terça-feira, 19 de março de 2013

O BRAÇO


- Até que é possível descobrir o curso regular das coisas.
- Mas isso é metafísica Manuel...
- O quê?!
- Não existe regularidade nas coisas humanas. Digo, a espécie do homem e sua condição cultural. A cultura, o que diz respeito aos modos de ser da espécie do homem é relativa, histórica, sabe como é. Os modos de ser humano tornam o curso da história irregular. Acho que isso é assim. Parece regular, mas do ponto de vista da natureza: clima, relevo, vegetação, hidrografia, essas coisas. Afinal de contas, somos inconstantes, não somos? As abelhas fazem mel do mesmo modo desde a antiguidade até hoje. Mas nós não. Plantamos, colhemos, distribuímos e comemos de modos bastante diversificados ao longo da história. Enquanto ser histórico, o indivíduo real e concreto, que sente dor e vacila, que vocifera e pragueja, cai ao chão e dele se levanta para pular, tropeçar e cair de novo. Somos seres inconstantes nessa constância natural da vida. Mas isso é só do ponto de vista da natureza. Não sei se vale para considerar a história, apesar de valer para a biologia, a geografia...
- É meu amigo, Carlos. Somos! Mas olha que esse verbo no plural é constante, digo, até quando as letras são colocadas do fim para o começo. Brincadeira. Mas isso que você diz é um juízo, né.
- É, e eu acredito que o ser humano pode possuir uma vontade livre. E acho que hoje em dia é da vontade livre do ser humano se notar como inconstante. Pelo menos é o que tá na moda.
- Vontade livre, né, sei. Você diz ser determinado por uma vontade pessoal. Isso não é moda? Algo que passa e que permanece ao mesmo tempo? Você crê numa outra força que não seja a da vontade própria de cada um? E d onde você acha que ela vem? É capaz de crer que a natureza pode determinar uma pessoa?
- É. Pelo clima...
- Uai. Se fosse assim não haveria sentido em trabalhar no Brasil do mesmo modo que se trabalha  nos EUA ou na Europa. Já te mostrei que qualquer conceito que é feito pra atribuir sentido e julgar as ações deve ser encarado pelo olhar histórico da relatividade. Mas você pode pensar diferente. Isso mostra que na espécie há inconstância, não pensamos ou julgamos as coisas do mesmo modo o tempo inteiro. A não ser quando as observadas são feitas a partir das particularidades, você e eu, por exemplo. Você se lembra do Nelson Levy?
- Estudei pouco. E você?
- Comecei. Pois então. Acho que o que ele diz é mais ou menos que a liberdade da vontade das ações humanas, por exemplo, é relativa ao valor que cada época e lugar atribui ao sentido ou valor dessa palavra, digo, dessa prática, sabe, ser livre, agir livremente. Acho que somos condicionados pela natureza, pela natureza da nossa espécie. A cultura influencia, mas para encontrar regularidade nas coisas humanas, quer dizer, na própria cultura, como formas de ser dos homens e mulheres no tempo e no espaço, acho melhor considerar o ponto de vista da natureza. 
- Isso é o mesmo que dizer que as vontades pessoais são determinadas por leis? Digo, por leis naturais universais imutáveis?
- Imutáveis?! Não, porque a própria natureza muda. Muda o ambiente, afinal de contas, os rios secam e as terras áridas alagam.
- Mas isso são acidentes. A humanidade do homem sob os auspícios do capitalismo também não é um acidente? Como todo acontecimento natural, Carlos.
- Mas é que penso a espécie dos homens como sujeitos individuais, que agem de modo confuso e irregular.
- Como é isso?
- O Eu, o self de cada um de nós que...
- Self? Isso é meio que uma ilusão da psicologia. Sei lá, mania que burguês tem de colocar as coisas encaixadas como se pudessem existir seres humanos individuais. Onde já se viu isso, julgar uma espécie inteira através de um único exemplar!
- Mas, e as biografias...
- Biografia é coisa séria. Não é diz-que-diz-que de publicidade e nem propaganda. Tem quem diga que é coisa de aristocrata que os burgueses acharam lucrativo copiar. Mas a gente, a gente comum, esse nós, está vendo, a gente existe é no plural. Não somos seres individuais, somos seres coletivos. Não consigo pensar a espécie do homem como átomo. Se fosse a cultura sim, a humanidade, né. Tem tanta forma de ser humano na espécie do homem. A gente anda em bando, de mãos dadas, se esbarrando ou se acotovelando nas ruas, e mesmo sem a gente se encontrar a gente vive junto, querendo ser feliz, ter uma vida boa.
- Mas existe uma vida boa, não? Uma vida que se vive em paz...
- Como? Só se for de falar, quer dizer, de retórica. Não se vive em paz. Se vive ou não se vive. De qualquer modo é luta todo dia, sabe o ditado, matar um leão por dia...
- Sei.
- Então. E se quiser pode incluir a ele desviar de umas dez antas a cada leão...
- Está certo Manuel. Mas fora de brincadeira, você não acredita numa vida boa?
- Numa só, não. Creio que tem um monte de vidas boas para serem vividas ao longo de uma existência. Daí você pode pegar as biografias e considerar quantas vidas boas uma pessoa já pôde viver enquanto existiu. Ou então, fazer o que alguns historiadores já fizeram e hoje em dia não fazem mais, pelo menos não fazem muito, que é considerar a existência de um modo de ser humano no tempo e verificar quantas vidas boas já não foram pensadas por ele, para ele.
- Mas ai você está falando na espécie...
- É, e não é. Olha, Carlos, a espécie é uma, mas o modo de vida dela é variado. Se você considerar apenas o modo de vida animal, vai ver que, na natureza, a gente se equivale a outros animais.
- Mas somos racionais...
- Então, como ia dizendo. É e não é. A natureza deu a estas flores aqui do jardim espinhos e àquele gato ali garras afiadas e uma coluna vertebral maleável. Quer dizer, cada criatura, cada ser vivo, é dotado de mecanismos que lhes permitem ser o que eles são independente do juízo de valor que possa ser feito. A espécie do homem, como espécie animal, dentre outras, possui a capacidade da razão. Mas não diria que possui a razão. Tem horas que a gente age sem ela, como se fôssemos só animais mesmo.
- E isso é o que nos diferencia das outras espécies...
- E de nós mesmos. Porque pela razão a espécie desenvolve capacidades que lhes são necessárias para sobreviver ao mundo natural, incluindo aí a própria espécie do homem.
- Mas... E os indivíduos seletos, os espécimes raros da nossa espécie. Eles não valem individualmente?
- Nossa, falando assim você parece um jardineiro que conheço. Valem... um ponto, um conto, uma nota. Que nem dessas aqui, de dinheiro. Você se lembra da nota de “um barão”?
- Sei...
- Então, como ia dizendo: o que é irregular está no que se toma individualmente, mas a regularidade pode ser percebida no conjunto da espécie. E te digo mais, essa regularidade pode ser tomada num sentido de desenvolvimento progressivo, lento, sabe como é? De repente há umas escalas aceleradas, como na música, mas só pra dar um tom de lentidão. Já ouviu Marco Antônio Araújo, o violonista? Então, isso é semelhante à música, o tal do rock progressivo. Outra coisa é jazz, essas quebradas inconstantes, feitas de improviso, que fazem lembrar as imagens da vida da gente no dia-a-dia cosmopolita.
- Mas então existe uma disposição original, um começo do...
- Creio que não, ou melhor, sim. É. Já notou que em todas as épocas e lugares as pessoas sentem vontade de viver? Acho que a vontade de viver (bem ou mal não interessa agora) é intrínseca ao próprio homem como espécie. Igual criança que respira pela primeira vez fora do útero materno. Sem saber como nem porque, respira, sente vontade, mesmo sem saber, muito menos o que sente. Esse saber se arranja depois, e mesmo sem saber como funciona o sistema respiratório a gente respira.
- Sim, os indivíduos vivem de modos tão diferentes. Por isso acho que é tudo fragmentado, quebrado... e que essa coisa de totalidade, universalidade não passa de metafísica de homem que bebe vinho e usa vestido.
- Como? Acho que você entendeu a metafísica num canil. E você queria o quê, que as épocas e as pessoas fossem iguais? Já não basta essa biologia usada para entreter ou adestrar candidatos a uma vaga no vestibular?
- Então a espécie humana age historicamente como se tivesse um “plano superior” traçado para ela?
- Rapaz, senta direito ai. Deixa eu te contar uma história. Posso? Tem tempo para ouvir?
- Vamos lá, acho que sim.
- Jovens! Antes, vou tentar explicar mais uma vez. A vontade livre que você pensa praticar é uma invenção do gênio humano, um valor, um juízo criado para atribuir sentido ao mundo vivido. O que não invalida supor que o mundo vivido não tenha um sentido, quem sabe, inatingível por nós. Nós somos parte desse mundo caótico e sem sentido, tudo bem, e vive-lo não significa que o vivemos por inteiro. Tampouco que o podemos saber por inteiro. Nossa espécie não tem nenhum propósito racional próprio. O que temos de próprio é o que Kant chamou de “vontade determinada”, não por nós, mas pela nossa terrível condição de pertencermos à natureza.
- Terrível?! Mas se nós podemos transformá-la...
- Daí ela nos transforma...
- Ah, mas a filosofia analítica dá conta de que é pela linguagem que nós atribuímos sentido ao mundo!
- E o mundo nos significa. Sei. Eu falava de metafísica, não de materialismo ou de dialética. Considere o seguinte, que todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a se desenvolver um dia. Isso está presente em todos os animais, e pode ser visto pela observação externa e pela observação interna ou anatômica. Um órgão que não deva ser usado é uma contradição.
- Ah, Manuel, mas isso é doutrina teleológica...
- Psiu! Quieto porque o que tenho para contar é explicativo. Se abrirmos mão desse princípio kantiano de que as disposições naturais são reguladas por leis universais não teremos uma natureza regulada por leis, mas um jogo sem finalidade da natureza, uma indeterminação desoladora tomaria conta do fio condutor da razão.
- E a razão tem fio?
- Quieto. Deixe o ceticismo pra o final. Como partes desgarradas desse mundo, como individualidades, nossas disposições naturais que estão voltadas para o uso da razão não podem se desenvolver. O que quer dizer que é apenas como espécie que podemos desenvolver nossas disposições naturais completamente e conforme um fim. Como individualidades, somos absurdos, caóticos, esquizofrênicos, paranoicos.
- Será que é por isso que os livros do Freud continuam dando certo, mais do que os de Marx e Nietzsche?
- (...)
- Desculpe. Continue, por favor.
- O que tentamos realizar sozinhos, em meio a nossa condição de igualdade natural e diversidade cultural é, no fundo, uma cópia dos propósitos da natureza. Mas a natureza nos deu a razão, e às vacas, não. E por quê? Porque a natureza tem planos para nós, planos que ultrapassam a ordenação mecânica dela própria. Isso está em Kant – espero que esteja. A natureza pretende que nos realizemos de um modo diferente da existência puramente animal. Se nossa espécie é animal, por outro lado ela também é capaz de atingir a razão, o que nos torna culturais, seres de conhecimento, e não apenas de instintos. Nossa felicidade, nossos ideais de “vida boa” não podem ser atingidos somente pelos instintos. Precisamos nos realizar por nós mesmos, livres do instinto animal, por meio da razão. Olha só aqueles trabalhadores. Observe como se felicitam simplesmente por se comportarem como animais. Gritam, esperneiam, batem uns nos outros, reclamam direitos, fogem dos deveres e depois que bebem dois ou três copos de cerveja cantam e acham que a vida que levam é boa. E os patrões, sangue sugas, se regozijam de serem felizes e terem uma “vida boa” por agirem como vermes, quer dizer, numa escala abaixo a dos animais. E me parece que a natureza não se importa se vivemos felizes ou não, bem ou mal. Ao contrário, ela parece nos ter traçado a finalidade de vivermos de um modo a nos tornarmos dignos desse viver, pela nossa conduta.
- Você quer dizer a ética?
- É. Só assim, com o trabalho da razão, seremos dignos de vida e de bem-estar.
- E a moral, Manuel?
- Isso é uma necessidade. Sabendo que a conduta pode ser desviada por algum instinto (sensação animal), a gente inventa isso para tentar nos controlar, quer dizer, para nos fazer lembrar que existe uma conduta, e que no final das contas, é a conduta que vale.
- Parece enigmático.
- Mas é algo que nos permite traçar um plano para nossa espécie, que procede sem plano nenhum.
Agora recosta aí, acende um cigarro. Dá um pra mim. Há um tempo pude assistir um acontecimento desses que a gente preferiria estar longe para não ver. Do tipo, poder fumar sem ter de olhar essas fotografias horrorosas no maço de cigarros. O que vi? Você dirá que é um absurdo. Que invento. Não importa. O importante é você calar para me ouvir, depois, se quiser, comente do modo que puder.
Dias atrás vi um braço. Sim. Na verdade não vi, percebi um braço. O braço escorava um corpo debruçado no parapeito de uma janela. Havia uma casa. E as portas da casa e de dentro da casa estavam fechadas. Um absurdo se apossou dos nervos daquele braço. Eu o percebia tremer. Não era frio, nem medo. O corpo parecia reto, frio, mas o braço, não dois, mas um braço apenas tremia, parecendo quente e agitado. Parado, meu olhar admirava aquela inquietação latejando como se a aorta fosse rebentar a qualquer instante. Permaneci ali com uma sensação calcinante de consciência do tempo que passava. Apoiava minha vista na inquietação. A atmosfera do cômodo parecia indiferente às emoções manifestadas pelo braço. Seria a pressão do hábito o que me detinha ali?
O motivo todo era fútil, uma tolice. O braço tinha deixado a casa ou a casa o havia colocado pra fora, não sei ao certo. Como eu soube? Não importa. Eu estava lá, eu vi.
O braço parecia absorvido na luta pela vida, no quarto, em que também olhava imagens através do espelho. Pobre corpo obrigado a se defender do próprio braço. Era preciso mantê-lo, mas sem prestar-lhe muita atenção. Nem a cama de sucupira talhada pelo artesão de Carangola, nem o tablet enviado por um amigo da Zona Franca de Manaus chamavam a atenção. Revi passar de um lado a outro até estacionar e sentir que o sol feria a vidraça da janela.
Lá fora um jardim cercava a entrada da casa. Ali dentro todas as portas que se abriam davam para outros cômodos com portas e janelas. Realidade que emprestava à percepção do braço uma sensibilidade esquizofrênica. Vencidos esses detalhes...
- O ser humano adapta-se a tudo, Manuel.
- Uai, rapaz, essa frase é surrada, mas presta pra agora. Ouça. A natureza se vale do meio para realizar todas as suas disposições. É no antagonismo que vivemos. O braço, por exemplo, parecia que se agarrava a esse tipo de ideia para não decair na miséria de um crime contra a vida. Trancado no do corpo era como se soubesse que o tempo não criara para ele nem uma mísera existência dessas que são suplementares e que vivem à sombra de outras. Intuía que se houvesse um lugar no mundo ao qual estivesse destinado, este surgiria da massa das coisas que constituem o habitual e que o tempo continuava a correr docemente, indiferente ao braço. Triste, acocorado, abraçado ao abdômen e com a cabeça recostada na parede, o corpo sentia nos pulsos a percussão de uma música misteriosa que lhe fazia volver ao organismo que respirava e deglutia suas células: tremia num esforço de vida.
- Miserável o ser humano que se adapta a tudo, né Manuel?
- Sem se revoltar, talvez. Mas escuta, senão eu paro de contar. Contra as mudanças que se lhe antepõem como condição para seguir vivendo é que o homem revoltado parece agir. Já leu Camus? Bom, mas pelo modo como percebi que se manifestava, o braço parecia sentir uma cruel correspondência com o pensamento. Vagarosamente abandonou a posição em que estava e passou a seguir o corpo, badalando feito o pendulo de um relógio.
- Esse jardim que existe lá fora...
- Menino, deixa contar. O jardim era uma coisa fora da casa. Ele não chegava dentro, porque só existe lá fora, não pode ser nunca o jardim para a casa, mas o jardim da casa, e serve só para enfeitar a fachada para os outros verem a onde o braço mora. Esse jardim é dos outros.
- E o braço?
- Sei lá como isso surgiu. Era um corpo, uma ideia, de repente um braço. Podia ser um nariz, uma peça de roupa, já leu Gogol? Em torno do corpo uma atmosfera cinza triste e nela se fixava a imagem do braço, dos objetos inanimados que começaram a adquirir vida própria, bem mais intensa do que a que vivera. Sentia como se as coisas e as palavras tivessem mais vida a oferecer ao mundo do que o próprio braço poderia viver para oferecer. E isto o fazia suar num esforço para despertar a lembrança que o sufocasse de vez. Mas cedia a cada instante por causa de uma folha ou outra que caía da copa da árvore lá na rua, por causa de uma brisa de ar crispado no minúsculo vão de uma trinca no vidro. O grande caminho que o corpo lhe emprestara estava ali, coberto com a lama esturricada debaixo de um teto de sol.
Um movimento extraordinariamente rápido, brusco para um braço abatido, volveu o corpo inteiro para a cama e sem mais o braço usou a mão com os dedos e apanhou um livro que jazia sobre o edredom. “Você, como pode!” Disse ao livro. “Ainda não acredito. Que absurdo! Um livro ser tomando por sujeito de uma história, vá lá, mas assim, de um modo pernóstico”. Não pôde crer que fosse o livro o sujeito de uma ação sem cabimento.
- Não pôde ou não quis? Afinal...
- Deixa contar. De pé, parado diante do espelho, comparou ao mesmo tempo a personalidade que cria com as das outras pessoas com as quais tinha convivido por mais tempo, se imaginando numa posição entre a atitude e a beleza da forma das atitudes do corpo alheio. Mas logo reconheceu que essa acuidade interior não era mais do que um reflexo adquirido pelo esforço de um choque violento. Quis fazer ir embora, mas não conseguiu fazer, nem ir. Ficou ali a vida inteira, se pudesse ter tido pelo menos um fiapo de vida para chamar de inteira.
- Que tolice. Por que não diz logo isso tudo aconteceu com...
- Por que não falo? Por que não vou...
- Imagino que chegaria a algum lugar.
- Sei que chegaria a algum lugar. Mas onde? Ah, sim, aos termos finais disso que conto. Vamos tomar um café?
- Desculpe interromper. Sei que isso parece importante para você, mas não vejo onde deseja chegar...
- Que diabo! Não importa chegar, o que importa é ir. Esse é o maior dos problemas da espécie humana: querer um ponto final para tudo, um final e um começo, quando o que vale é o caminho. Outro problema parecer ser o de admitir a universalidade do direito. Cada um quer que as coisas sejam seja assim ou assado. E o pior é que o homem, enquanto espécie, ora tem necessidade de um senhor ora de ser senhor de alguém. E isso não se resolve de modo definitivo. Era isso que queria dizer. O braço não se decidia. Mas compreendo a que extremo uma simples atitude de autoconfissão poderia levar uma pessoa desconfiada com o braço. No fundo, sei que sabia que tudo o mais seria inútil, e o braço incomodava. Detesto café passando na hora. Nesse lugar quente.
- Mas o que ia contando?
- Sim. O corpo, deitado na cama, media o tamanho do acontecido com palavras de desespero. E na confusão do pensamento nascia como que uma nova visão das coisas. Mesmo que se colocasse numa posição falsa e por muito se esforçasse por atenuar a repulsa em relação aos outros, não conseguia mais do que esconder o amargo e silencioso rancor plantado no coração. Será possível? Mesmo que tentasse renovar a amizade com as pessoas da casa encontraria, no fundo, o veneno daquela instituição inoculado no braço. Não se constrói facilmente aquilo que um momento de irreflexão destruiu sem esforço. Sabia que as palavras ausentes eram as essenciais. Como ignorar qualquer coisa se aquela angústia nascia da sua própria carne?
O dilema absurdo que o abraçara na cama era a marca de um acontecimento que o desnorteara para o resto dos seus dias. Deitado na cama era um pavio sem pólvora, um navio sem bússola, uma história repleta de conteúdo sem enredo, ou o que pode ser pior, com enredo tomado de empréstimo a um narrador sem ambiente para encarnar as personagens: um braço e nada mais. Sua existência era uma curiosa história. Não se sentia com direito de requerer coisa alguma, aprendera, de pequeno, com a casa, a estrangular desejos pessoais, nem sequer fazer ele próprio a sua pipa podia; empiná-la, então, era sinal de surra no fim do dia. E até das surras guardava lembrança de que eram para a sua proteção. Afinal de contas morria-se também de choque elétrico.  
Sabia, lá no fundo da intimidade, que a diversão era causa para as desventuras da casa, que já tinha preocupações demais no dia a dia, e não podia se dar ao luxo de ter preocupações com uma criança que brinca. O melhor, para a casa, sempre fora o pior para o braço: beliscões, chineladas, vassouradas, raquetadas. Permaneceu intimidado por móveis, porta-retratos, espelhos, prateleiras, tapetes, sabonetes, latrinas, e tudo o que há de se respeitar cerimonialmente dentro de uma casa. Em suma, uma história de vida pessoal que, até aquele momento, mergulhara o corpo na solidão de si mesmo em busca de um tempo perdido que pudesse ser revivido. Resumo que tudo consistia em nunca ter vivido bem dentro da própria casa. Era uma guerra da qual o passado não emprestou nenhum exemplo.
Notei que o braço pareceu lançar um olhar em torno de si, desejando esquecer o que o atormentava. O livro foi olhado com desdém, o tablet apanhado ao pé da cama para que pudesse ouvir música. “Bob Dylan”... Ah, os livros, não poderia ser o livro a causa da desgraça de uma pessoa. Não no século 21. Compreendera e até aceitara a queima de livros pelos cristãos em Alexandria, mesmo que só para acertar uma questão ou outra no vestibular. Conhecia razoavelmente as razões “racionais” que levaram muitos alemães a queimar livros nos anos 30 e 40 do século passado. Entendia a veracidade do mercado editorial na atualidade para editar livros de autoajuda mais do que brochuras decentes das quais as pessoas mais precisam do que gostam. Só não aceitava o fato definitivo que divorciara o braço do corpo e este da casa, o fato de terem contaminado a vida em comum com a imagem perversa de que aquele livro, agora jogado sob o lençol surrado da cama, era uma afronta à vida, uma ameaça à arquitetura e a toda vida social, porque o teria afastado do contato com as outras pessoas. Mas seria isso mesmo? Não seria isso uma mentira inventada para aplainar uma dor que esburacava a existência durante tanto tempo e da qual ainda não tinha entendido a origem?
No autofalante do tablet surgiam os acordes que surrupiaram o silêncio condicionado nas paredes dos cômodos da casa. Dez minutos passados como se fossem um dia inteiro e nenhuma música rolou inteira. Interrompia uma após a outra depois de ouvir a introdução. Chateado de não poder ouvir música, era como se o braço se sentisse uma cinza atirada ao vento. “Eles me odeiam. Disseram na minha cara que sentem horror a esse tipo de gente que eu me tornei: ‘Não suportamos esse seu jeito’, disseram, ‘não toleramos esse tipo de atitude!’. E me jogam na lata que é por causa da casa, que eu tenho que entender”. Vai ver, foi a avó, matriarca da família, que tornava os dias perdidos bancando a velha paralítica que nada fazia que não fossem maldades para testar a fidelidade e docilidade canina dos outros membros da casa.
Desligado o tablet, a atenção voltou-se para o barulho do ventilador ligado num canto desde o dia anterior. O braço agia como que se recordasse um monólogo que a velha paralítica havia apresentado dias atrás: “Entre nós nunca existiu esse negócio de ficar sentado o dia todo lendo. Aqui a gente trabalha. Ainda mais quando se lê um livro só. Se você pelo menos estivesse escrevendo um para poder vender! Mas não, não escreve e nem ganha dinheiro com isso. Você quer o quê? Tem um tanto de professor formado nessa casa e que nunca leu nada. E você aí, se achando só porque lê. Nunca vi esse seu braço fazer nada além segurar livro. E ainda inventa de dar opinião na casa. O que é que você acha que pode aprender com isso, com esse monte de papel amarelado? A vida... escute bem, a vida é outra coisa”.
Tivesse ou não razão a velha paralítica, a perturbação era intensa no corpo do braço desajustado. Tanto que a imaginação da gente precisa dar uma volta inteira no parafuso a fim de apreender o quadro dessa história. Se é que existe moldura para ele. A questão era outra. Os livros de um modo geral surgiam apenas como trincheira. Aquele livro de papeis amarelados era apenas um signo, um sinal de vida que se queria fazer inteligente e que tanto ameaça os opróbrios da turba de espermatozoides que venceram a corrida na estrutura da casa. Não significava outra coisa, pelo menos não para o desespero do braço humano. O pior parecia ser não saber jamais se aquelas suposições levantadas obedeciam somente o descontrole da fantasia de cada um dos parentes. Era um horror velado o que havia revelado o cotidiano numa casa de família, numa casa que amara.
Odiava o costume da casa de mentir a propósito de tudo. Até mesmo sobre a felicidade. Mas fora isso que aprendera a fazer na vida doméstica e dificilmente conseguia encarar o mundo sem calçar alguma mentira deslavada nos pés antes de pisar no chão e misturar o corpo aos outros na rua. Ninguém gosta de gente triste e, no mais das vezes, os tristes aparecem aos olhos dos felizes como quem mendiga ou deseja roubar-lhes alguma coisa.
Sentia que nunca na vida teria coragem para a verdade, e que mentiria a vida inteira. Que não morreria de excesso de realidade. Talvez, tudo o que foi contado até aqui por este narrador metafísico não passe de mentira. Mente? Juro que não. Pode confiar. Tudo que contei até agora foi dito de coração aberto. E se conto é por que foi este o último pedido de um moribundo, o último pedido de um jovem a quem um dia eu tive acesso, e a quem devo minha vida. Por isso conto. Com respeito ao pedido de um morto.
Sim, mentiria pelo resto da vida só para não ter de suportar as consequências pessoais da terrível verdade que não conseguia experimentar. Se fosse amadurecido, creio, se tivesse um pouco da vivencia que tenho agora, imagino, não mentiria, mas ocultaria a verdade. Sim, porque todos que nos olham podem adivinhar nossos gestos. O que aprendemos ao longo da vida é como nos ocultar. Conhece Lúcio Cardoso? Ele anotou num Diário que “o que ocultamos, é o que importa, é o que somos”. Os loucos não ocultam nada – conhece Foucault? Nietzsche? Só lê Marx? Freud? – pois bem, os loucos expressam os gestos do mundo interior ao invés de repetirem os gestos do mundo aprendido, seus gestos traduzem os signos do mundo secreto em que vivem. Você sabe. Mas nada disso importa ou já não importa mais. A verdade é que para todos os parentes próximos não passava de um inseto, de uma mosca que, como na canção popular, perturbava o sono da casa com os gestos do seu braço.
“Mentir é o destino de todos os que aceitam a vida”. Repito que prefiro ocultar a mentir. Mas não se trata de mim. E repetia um refrão de uma canção do Walter Franco, adaptada diante do espelho, num ritual quase esquizofrênico: preciso ter “a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranquilo”. Já pensou? Mas isso também era uma mentira. Ou parecia ser. Não aceitava a vida. No caso, o hábito de mentir emprestava ao pensamento um colorido de realidade. Não podia ou não conseguia deixar de sorrir para a imagem que via no espelho. Não aceitava a vida, já disse, porque lutava para transformá-la de algum modo. Volvendo o olhar para a fissura que o sol abria na janela senti como que se escapasse do corpo um suspiro, e imaginava: “será esse triste movimento um jeito estranho e definitivo de não aceitar a vida?”.
O sol começou a arder, ainda não era meio dia e o corpo abaixou junto ao pé direito da cama para o braço apanhar uma lata de cigarros que ficava escondida debaixo do catre. Pensava: “então é isso agora; tudo que sofro pode se resumir no fio da meada de um cilindro cônico. Está aqui, em minhas mãos a salvação do mundo e, no entanto, para mim, isto é o prólogo da morte”. Cada um que se crie. É por isso que precisamos da coletividade. Mas era exatamente por ter se criado a si mesmo que o braço perecia embolorado no corpo dentro de um quarto. Ignorava as razões dos outros, menos a experiência do corpo. Se recusava a realidade, era por egoísmo, mas não por medo. Sentia aversão aos aborrecimentos que a realidade poderia trazer. Ou melhor, recusava a realidade por indolência, por preguiça de desdobrar. Via refletido no espelho um corpo a lamentar e um braço a soerguer nada no vazio.
Quase sem coragem para reviver o tempo perdido. Era ela, a verdade: a realidade definitiva de que fora sempre o único elemento estranho naquele ambiente doméstico. Desde que tornara professor parecia com um fermento mal lançado na massa. Esquisito ser que se escondia da família e dos parentes em geral atrás das capas de livros. Geralmente, nos últimos meses, atrás da capa daquele livro de paginas amareladas decompondo sobre a cama. “Dinheiro?” Era inútil poder ou não ganhá-lo. A vida familiar com a qual sempre sonhara era uma vida inatingível, a única coisa que aprendera a sonhar durante toda a vida. Especialmente naquelas circunstâncias que havia experimentado a vida em família. Se ao menos renunciasse ao que era e deixasse o corpo viver subsumido nas trevas com que a sombra da matriarca da família embrulhava as pessoas. Mas já não simpatizava mais com essa parenta. A quem a fortuna já havia deserdado da vida. A quem só conseguia enxergar naquele momento íntimo da memória pessoal como se fosse uma imagem de um monte de ruínas carcomidas e desmanteladas de uma velha residência patriarcal. No entanto, um sopro vindo sabe-se lá de qual profundeza que habita o interior do corpo humano lembrava de que ela é a avó. Não sei, mas parece tanto o diabo essa velha, penso.
Sentia a solidão pesar sobre a vida e o tormento dessas criaturas noturnas perdidas no abandono de si mesmas. Precisava saber algo. Mas o quê? Que era feito de pedra, dos pedaços de pedra arrancados para dar forma ao que havia tornado de pedra, a pedra? Quase concluía o óbvio de que ninguém pode viver só, entregue apenas ao seu desencanto. Com o coração real que pulsava no peito começava a compreender com que grande capacidade de se dar era feito aquele braço, de que natureza era feito para o abandono de si e a vitalidade do aperto de mão, do abraço, do encontro com a vida na ventura alheia. O braço parecia que tinha uma alma. Sua alma, imaginava, era feita para viver a vida alheia, era esta a sua vida, a vida toda. Uma espécie de signo. Mas o braço não queria nem saber. Era jovem, viril, muscular.
Pudera compreender aquele sortilégio que o distanciava das demais criaturas. Ser destinado ao mundo para permanecer à parte, dentro de uma grandeza ou de uma miséria que não era nem a grandeza nem a miséria habitual dos homens sonhadores. Vencendo a impressão que tivera, o braço fez um movimento de recuo para fora da visão do espelho e abriu a janela a fim de libertar o corpo do quarto e do cheiro das drogas fumadas e das drogas trazidas à memória pela lembrança dos dias perdidos.
O livro, não, não pode ser o livro. Que mal pode fazer às pessoas um livro? Uma pessoa comum lendo um livro pode até chamar a atenção nesse mundo de televisores, mas daí um professor ler um livro não devia ser estranho, muito menos aterrorizante a ponto de chegar a isto. Mas é. Aqui estou diante do livro. E o que ele pode fazer? Objeto inerte? Mas um professor pode fazer alguma coisa com um livro... ele faz? E o faz porque o livro o fez fazer?
Ali estava ele, rapaz, diante do livro, um braço armado. Lembra-se do filme O Nome da Rosa? Mas seria absurdo supor que esse caso pudesse ter alguma similitude com o da crônica medievalista de Umberto Ecco. Ao reparar uma figura imóvel na sombra que projetara à parede reparei que olhar para dentro de si não projeta para fora o que há dentro de si mesmo, mas imagens externas que a opinião dos outros exprimem para dentro quando se deixa a porta de casa ou as janelas abertas para a rua. Como que se fossem essas imagens vísceras nascidas com o braço. Era a sensação da solidão em que vivia. Tão só que tudo o que tinha eram as experiências comentadas dos outros. Consciência cruel a de se achar entregue a si mesmo, às suas próprias forças, sem poder contar com uma gota de suor alheio. Terrível consciência quando não se conhece tais forças, o valor que elas possuem e o equilíbrio que delas provém. Resmungava. Resmungo.
Alegria dolorosa a de chegar a alguma consciência agitada de sofrimentos sem formas. Voltei a notar o corpo pendurado sobre o braço, apoiado no parapeito da janela. Penso na perversidade do tempo, nessa perversidade que apodrece a carne e que, ao mesmo tempo, conserva no subterrâneo das pessoas essas sombras incolores que se agitam de repente no subsolo da memória. A um olhar ou um gesto, erguem-se empoeirados do sepulcro os dias esquecidos, só para fazer sofrer aquele que se distanciava levado pela corrente d’uma onda de cadáveres.
Que esse herói sem nome ou pessoalidade se desconhecesse e precisasse de um autor para narrar sua fortuna, vá lá, é coisa que a gente consegue entender. Que sofresse das reações impostas ao seu espírito, compreenderia também. Mas que um caboclo se sentisse um braço ameaçado de cair com o corpo inteiro nas grelhas da sua própria família é parte de um mistério que se tornou um tormento. Sem saber encontrar a força de que precisava, sentia entregar lentamente o que restava para a intrusão que aos poucos fazia crer na vinda de alguma força sobrenatural para salvar o braço daquilo que fizera com os restos da vida que fizeram para ele viver. Já não tenho mais medo. Ao abandono!
Pela primeira vez em dias sinto ao contar essas coisas uma vaga de certeza além de qualquer rancor. Uma verdade que se cumpriria porque era mais forte do que qualquer sentimento, mesmo que acreditasse ou amasse verdadeiramente qualquer sentimento. É na mentira que se vive bem nesse mundo. Insisto. A verdade é para poucos, a verdade é para os que morrem cedo demais e parecem viver tristes. Quereria mentir para ajustar o braço à essa história, nessa sociedade de fantasias moles e sem sentido.
Enquanto sofrera a suposição de um rompimento com a casa, a família se divertia com a realidade das ausências. Faziam piada e até comentavam sobre a debilidade mental e motora, já que não lia outro livro fazia meses e não saía de casa para as baladas por causa do tal do livro. Mas disto preferiria que tivesse permanecido alheio. Como se a ligação com o mundo fosse um ato fora da vontade, sentia que a barreira, a barricada, a trincheira cavada entre o braço e a casa era definitivamente um sentimento. O livro não era um objeto inanimado, como supusera antes, induzido pela brutalidade habitual da família. Era um poder estranho, um poder de dominar o corpo, o braço. Se havia medo, creio, constituía uma fraqueza de enfrentar as consequências dos atos livres que o braço pudesse praticar com o corpo em nome da razão e do amor.
Agora, com o desenrolar dessa vivência, noto que o braço se tornava impenetrável às injeções. Dificilmente saberia dizer quem é se o topasse novamente no espelho. Mas os espelhos não mentem, enganam, mas não deixam de dizer a verdade das formas que refletem. Preciso terminar. Ficamos algum tempo debaixo do sol e sinto minhas carnes amolecerem. Essa pequena história da vida que contei precisa chegar a um fim. Não sou eu coisa nenhuma. No limite, não passo de um atorzinho de meia tigela, criado com refrigerante e skine nos anos 80. Que direitos tenho sobre isso que digo? Nada. Foram eles que me deram tudo. Sim, eles têm lá suas razões. Agiram, fizeram acontecer. E eu? Eu assisti ao suicida, que num dia sai de si, da vida, para dar espaço às opiniões das pessoas como eu, que preferem viver na companhia de cadáveres e zumbis ou outros seres adjetos do que de gente de verdade. Então o que digo é que vagarosamente o braço ergueu o corpo e atravessou o tronco inteiro pelo parapeito, usando o mesmo braço como alavanca. Estava no segundo andar de um sobrado. Da altura dos olhos até o chão eram uns seis metros. Os gestos lentos. De lentidão premeditada. Como podia ser aquilo? Mas no útero da decisão de deixar o corpo cair de cabeça no chão um movimento confuso dispôs o tempo, que surgiu a fim de devorar tudo, inclusive o desejo de morrer. É possível que tenha descoberto alguma coisa. Ninguém age e pensa impunemente nessa vida.
Confesso que o braço veio a mim como se viesse um tuaregue beber numa fonte. Mas por quê? Por que essa necessidade de se exprimir, e nessas condições, nessa situação, como se procurasse uma alma pura para suprir a sede da culpa? Sim, queria estancar a sede do amor ferido pela presença daquelas horas sem luz. Conto, expresso repetidas vezes, o que foi contado a mim. Claro que palavras a mais palavras a menos nem tudo o que é visto pode ser dito, que dirá escrito. Há muito que se perde da narrativa original, mas também há algum ganho de imaginação com a transcrição daquilo que se ouve contar. Já leu os romances da Leida Reis? Personagens abandonados pelos deuses, pela razão, entregues à loucura de viver com suas vontades livres. Sei lá. Qualquer coisa desesperada fica no caminho para que uma trágica percepção da vida se possa reconstruir com palavras. O braço percebeu demasiado tarde que certos sonos são como outra vida. Os sofrimentos e a negação da vida continuam. E dessa outra vida só se desperta para esconder um ódio que a realidade estrangula no medo.
No fundo de tudo é o medo de si mesmo. É o medo de permanecer sozinho, nesse mundo onde a dor de cada um é solitária e se realiza solitária e morre solitária. Não dá nem pra falar de dor e sofrimento sem criar um tom avermelhado de vergonha nas faces. Como disse antes, dor, sofrimento, vida, desespero, eu interior (self), enfim, cada um que se cuide, cada um que se crie. O que importa é fazermos isso juntos. De resto é tudo mais ou menos a mesma coisa pra todos. Intestinos, sucos gástricos, bactérias, fungos, células que se vão enquanto outras nascem, só pra manter a destruição gradual e lenta que o tempo produz sobre todas as coisas, até que elas morrem.
O tempo passa e o braço apodrece pela carne. Parece gostar de se perturbar. Mas pelo menos não chegou ao ponto de flagelar a mão e acusar com o dedo um pobre volume de papeis amarelados pelo desmantelo que foi a vida. Pode muito bem ter chegado ao termo de suas descobertas íntimas através de um imbróglio com a casa. Mas neste caso o que aconteceu foi uma mera faceta da vida, faceta que usa a imbecilidade e a ignorância para fazer afirmar a inteligência e a sutileza. Por fim, o braço se descobre e se encontra na antítese de suas teses domésticas. O amanhã, ele desaparecerá dentro dos livros, embebido em jornais. 
Agora vamos à sombra, enquanto termino de contar o horror da lucidez que me pega pela mão para me fazer sofrer. Nada importa individualmente, os sofrimentos de cada um a cada um pertence, porque nada importa ao homem que esmaga o tempo na tranquilidade de um livro. Você, a quem tenho me dirigido, e que com silêncio tem me prestado a atenção, pode até dizer que essa história toda é ridícula. Mas quem poderá deixar de ser ridículo quando luta com a razão, em nome do amor? Como assim, você dirá? Mas saiba que o progresso da espécie interessa ao indivíduo, mas o progresso do indivíduo não importa nada para a espécie. E se aperfeiçoamos a razão, não é pela razão, mas pela nossa vida animal, pela continuidade da nossa pobre condição humana. Isso vai longe e já temos de ir para a aula. Vamos. Que pode pensar um homem quando está cheio de si mesmo? Que experiências pode dizer um homem quando as experiências que possui são meras anotações extraídas de livros? Como esse braço, que digo, é meu, viveu atolado na mentira! Sua verdade era apanhar livros, empunhá-los para a esgrima com as ideias, ser professor. Foi sempre assim, desde que ensinava história e geografia aos colegas de ginásio em troca de cerveja. No mais, ele viveu atolado na mentira para poder suspirar essa verdade encontrada no magistério. Morreu cedo, aos 28 anos de idade. Como corpo que, por inteiro, apodrece dentro de casa e morre lançado ao vazio, ao nada. Encontrei-o primeiro, ninguém mais o quis saber. Providenciei um funeral e a cremação. Servi cerveja para os amigos cadáveres beberem o defunto e carne para provarem seu último pedaço de companhia. Achei-o deitado como que se abraçasse o chão. Ao lado do corpo o braço encostado no tablet que rolava Behind the wall off Sleep, do Black Sabbath. Dentro da casa, num canto da sala, um caderninho novo, com uma única frase escrita à mão, dizendo: “a quem primeiro me encontrar, avise aos amigos que miséria é ter um coração feito para o amor”.

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