- Até que é possível descobrir o curso regular das
coisas.
- Mas isso é metafísica Manuel...
- O quê?!
- Não existe regularidade nas coisas humanas. Digo,
a espécie do homem e sua condição cultural. A cultura, o que diz respeito aos
modos de ser da espécie do homem é
relativa, histórica, sabe como é. Os modos de ser humano tornam o curso da
história irregular. Acho que isso é assim. Parece regular, mas do ponto de vista da natureza: clima, relevo, vegetação, hidrografia, essas coisas. Afinal de contas,
somos inconstantes, não somos? As abelhas fazem mel do mesmo modo desde a antiguidade até hoje. Mas nós não. Plantamos, colhemos, distribuímos e comemos de modos bastante diversificados ao longo da história. Enquanto ser histórico, o indivíduo real e concreto, que sente dor e vacila, que vocifera e pragueja, cai ao chão e dele se levanta para pular, tropeçar e cair de novo. Somos seres inconstantes nessa constância natural da vida. Mas isso é só do ponto de vista da natureza. Não sei se vale para considerar a história, apesar de valer para a biologia, a geografia...
- É meu amigo, Carlos. Somos! Mas olha que esse
verbo no plural é constante, digo, até quando as letras são colocadas do fim para
o começo. Brincadeira. Mas isso que você diz é um juízo, né.
- É, e eu acredito que o ser humano pode possuir uma
vontade livre. E acho que hoje em dia é da vontade livre do ser humano se notar como inconstante. Pelo menos é o que tá na moda.
- Vontade livre, né, sei. Você diz ser determinado
por uma vontade pessoal. Isso não é moda? Algo que passa e que permanece ao mesmo tempo? Você crê numa outra força que não seja a da vontade
própria de cada um? E d onde você acha que ela vem? É capaz de crer que a natureza pode determinar uma pessoa?
- É. Pelo clima...
- Uai. Se fosse assim não haveria sentido em trabalhar no Brasil do mesmo modo que se trabalha nos EUA ou na Europa. Já te mostrei que qualquer conceito que é feito
pra atribuir sentido e julgar as ações deve ser encarado pelo olhar histórico
da relatividade. Mas você pode pensar diferente. Isso mostra que na espécie há
inconstância, não pensamos ou julgamos as coisas do mesmo modo o tempo inteiro. A não ser quando as observadas são feitas a partir das particularidades, você e eu, por
exemplo. Você se lembra do Nelson Levy?
- Estudei pouco. E você?
- Comecei. Pois então. Acho que o que ele diz é mais ou menos que a
liberdade da vontade das ações humanas, por exemplo, é relativa ao valor que
cada época e lugar atribui ao sentido ou valor dessa palavra, digo, dessa
prática, sabe, ser livre, agir livremente. Acho que somos condicionados pela natureza, pela natureza da nossa espécie. A cultura influencia, mas para encontrar regularidade nas coisas humanas, quer dizer, na própria cultura, como formas de ser dos homens e mulheres no tempo e no espaço, acho melhor considerar o ponto de vista da natureza.
- Isso é o mesmo que dizer que as vontades pessoais são determinadas
por leis? Digo, por leis naturais universais imutáveis?
- Imutáveis?! Não, porque a própria natureza muda. Muda o ambiente, afinal de contas, os rios secam e as terras áridas alagam.
- Mas isso são acidentes. A humanidade do homem sob os auspícios do capitalismo também não é um acidente? Como todo acontecimento natural, Carlos.
- Imutáveis?! Não, porque a própria natureza muda. Muda o ambiente, afinal de contas, os rios secam e as terras áridas alagam.
- Mas isso são acidentes. A humanidade do homem sob os auspícios do capitalismo também não é um acidente? Como todo acontecimento natural, Carlos.
- Mas é que penso a espécie dos homens como sujeitos
individuais, que agem de modo confuso e irregular.
- Como é isso?
- O Eu, o self
de cada um de nós que...
- Self?
Isso é meio que uma ilusão da psicologia. Sei lá, mania que burguês tem de colocar
as coisas encaixadas como se pudessem existir seres humanos individuais. Onde
já se viu isso, julgar uma espécie inteira através de um único exemplar!
- Mas, e as biografias...
- Biografia é coisa séria. Não é diz-que-diz-que de
publicidade e nem propaganda. Tem quem diga que é coisa de aristocrata que os
burgueses acharam lucrativo copiar. Mas a gente, a gente comum, esse nós, está
vendo, a gente existe é no plural. Não somos seres individuais, somos seres coletivos.
Não consigo pensar a espécie do homem como átomo. Se fosse a cultura sim, a
humanidade, né. Tem tanta forma de ser humano na espécie do homem. A gente anda
em bando, de mãos dadas, se esbarrando ou se acotovelando nas ruas, e mesmo sem
a gente se encontrar a gente vive junto, querendo ser feliz, ter uma vida boa.
- Mas existe uma vida boa, não? Uma vida que se vive
em paz...
- Como? Só se for de falar, quer dizer, de retórica.
Não se vive em paz. Se vive ou não se vive. De qualquer modo é luta todo dia,
sabe o ditado, matar um leão por dia...
- Sei.
- Então. E se quiser pode incluir a ele desviar de
umas dez antas a cada leão...
- Está certo Manuel. Mas fora de brincadeira, você
não acredita numa vida boa?
- Numa só, não. Creio que tem um monte de vidas boas
para serem vividas ao longo de uma existência. Daí você pode pegar as
biografias e considerar quantas vidas boas uma pessoa já pôde viver enquanto
existiu. Ou então, fazer o que alguns historiadores já fizeram e hoje em dia
não fazem mais, pelo menos não fazem muito, que é considerar a existência de um
modo de ser humano no tempo e verificar quantas vidas boas já não foram
pensadas por ele, para ele.
- Mas ai você está falando na espécie...
- É, e não é. Olha, Carlos, a espécie é uma, mas o
modo de vida dela é variado. Se você considerar apenas o modo de vida animal,
vai ver que, na natureza, a gente se equivale a outros animais.
- Mas somos racionais...
- Então, como ia dizendo. É e não é. A natureza deu
a estas flores aqui do jardim espinhos e àquele gato ali garras afiadas e uma
coluna vertebral maleável. Quer dizer, cada criatura, cada ser vivo, é dotado
de mecanismos que lhes permitem ser o que eles são independente do juízo de
valor que possa ser feito. A espécie do homem, como espécie animal, dentre
outras, possui a capacidade da razão. Mas não diria que possui a razão. Tem
horas que a gente age sem ela, como se fôssemos só animais mesmo.
- E isso é o que nos diferencia das outras
espécies...
- E de nós mesmos. Porque pela razão a espécie
desenvolve capacidades que lhes são necessárias para sobreviver ao mundo
natural, incluindo aí a própria espécie do homem.
- Mas... E os indivíduos seletos, os espécimes raros
da nossa espécie. Eles não valem individualmente?
- Nossa, falando assim você parece um jardineiro que
conheço. Valem... um ponto, um conto, uma nota. Que nem dessas aqui, de
dinheiro. Você se lembra da nota de “um barão”?
- Sei...
- Então, como ia dizendo: o que é irregular está no
que se toma individualmente, mas a regularidade pode ser percebida no conjunto
da espécie. E te digo mais, essa regularidade pode ser tomada num sentido de
desenvolvimento progressivo, lento, sabe como é? De repente há umas escalas aceleradas,
como na música, mas só pra dar um tom de lentidão. Já ouviu Marco Antônio
Araújo, o violonista? Então, isso é semelhante à música, o tal do rock
progressivo. Outra coisa é jazz, essas quebradas inconstantes, feitas de improviso,
que fazem lembrar as imagens da vida da gente no dia-a-dia cosmopolita.
- Mas então existe uma disposição original, um
começo do...
- Creio que não, ou melhor, sim. É. Já notou que em
todas as épocas e lugares as pessoas sentem vontade de viver? Acho que a
vontade de viver (bem ou mal não interessa agora) é intrínseca ao próprio homem
como espécie. Igual criança que respira pela primeira vez fora do útero
materno. Sem saber como nem porque, respira, sente vontade, mesmo sem saber,
muito menos o que sente. Esse saber se arranja depois, e mesmo sem saber como
funciona o sistema respiratório a gente respira.
- Sim, os indivíduos vivem de modos tão diferentes.
Por isso acho que é tudo fragmentado, quebrado... e que essa coisa de
totalidade, universalidade não passa de metafísica de homem que bebe vinho e
usa vestido.
- Como? Acho que você entendeu a metafísica num
canil. E você queria o quê, que as épocas e as pessoas fossem iguais? Já não
basta essa biologia usada para entreter ou adestrar candidatos a uma vaga no
vestibular?
- Então a espécie humana age historicamente como se
tivesse um “plano superior” traçado para ela?
- Rapaz, senta direito ai. Deixa eu te contar uma
história. Posso? Tem tempo para ouvir?
- Vamos lá, acho que sim.
- Jovens! Antes, vou tentar explicar mais uma vez. A
vontade livre que você pensa praticar é uma invenção do gênio humano, um valor,
um juízo criado para atribuir sentido ao mundo vivido. O que não invalida supor
que o mundo vivido não tenha um sentido, quem sabe, inatingível por nós. Nós
somos parte desse mundo caótico e sem sentido, tudo bem, e vive-lo não
significa que o vivemos por inteiro. Tampouco que o podemos saber por inteiro.
Nossa espécie não tem nenhum propósito racional próprio. O que temos de próprio
é o que Kant chamou de “vontade determinada”, não por nós, mas pela nossa
terrível condição de pertencermos à natureza.
- Terrível?! Mas se nós podemos transformá-la...
- Daí ela nos transforma...
- Ah, mas a filosofia analítica dá conta de que é
pela linguagem que nós atribuímos sentido ao mundo!
- E o mundo nos significa. Sei. Eu falava de
metafísica, não de materialismo ou de dialética. Considere o seguinte, que todas
as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a se desenvolver um
dia. Isso está presente em todos os animais, e pode ser visto pela observação
externa e pela observação interna ou anatômica. Um órgão que não deva ser usado
é uma contradição.
- Ah, Manuel, mas isso é doutrina teleológica...
- Psiu! Quieto porque o que tenho para contar é explicativo.
Se abrirmos mão desse princípio kantiano de que as disposições naturais são
reguladas por leis universais não teremos uma natureza regulada por leis, mas
um jogo sem finalidade da natureza, uma indeterminação desoladora tomaria conta
do fio condutor da razão.
- E a razão tem fio?
- Quieto. Deixe o ceticismo pra o final. Como partes
desgarradas desse mundo, como individualidades, nossas disposições naturais que
estão voltadas para o uso da razão não podem se desenvolver. O que quer dizer
que é apenas como espécie que podemos desenvolver nossas disposições naturais
completamente e conforme um fim. Como individualidades, somos absurdos,
caóticos, esquizofrênicos, paranoicos.
- Será que é por isso que os livros do Freud
continuam dando certo, mais do que os de Marx e Nietzsche?
- (...)
- Desculpe. Continue, por favor.
- O que tentamos realizar sozinhos, em meio a nossa
condição de igualdade natural e diversidade cultural é, no fundo, uma cópia dos
propósitos da natureza. Mas a natureza nos deu a razão, e às vacas, não. E por
quê? Porque a natureza tem planos para nós, planos que ultrapassam a ordenação
mecânica dela própria. Isso está em Kant – espero que esteja. A natureza pretende
que nos realizemos de um modo diferente da existência puramente animal. Se
nossa espécie é animal, por outro lado ela também é capaz de atingir a razão, o
que nos torna culturais, seres de conhecimento, e não apenas de instintos.
Nossa felicidade, nossos ideais de “vida boa” não podem ser atingidos somente pelos
instintos. Precisamos nos realizar por nós mesmos, livres do instinto animal,
por meio da razão. Olha só aqueles trabalhadores. Observe como se felicitam
simplesmente por se comportarem como animais. Gritam, esperneiam, batem uns nos
outros, reclamam direitos, fogem dos deveres e depois que bebem dois ou três
copos de cerveja cantam e acham que a vida que levam é boa. E os patrões,
sangue sugas, se regozijam de serem felizes e terem uma “vida boa” por agirem
como vermes, quer dizer, numa escala abaixo a dos animais. E me parece que a
natureza não se importa se vivemos felizes ou não, bem ou mal. Ao contrário,
ela parece nos ter traçado a finalidade de vivermos de um modo a nos tornarmos
dignos desse viver, pela nossa conduta.
- Você quer dizer a ética?
- É. Só assim, com o trabalho da razão, seremos
dignos de vida e de bem-estar.
- E a moral, Manuel?
- Isso é uma necessidade. Sabendo que a conduta pode
ser desviada por algum instinto (sensação animal), a gente inventa isso para
tentar nos controlar, quer dizer, para nos fazer lembrar que existe uma
conduta, e que no final das contas, é a conduta que vale.
- Parece enigmático.
- Mas é algo que nos permite traçar um plano para
nossa espécie, que procede sem plano nenhum.
Agora recosta aí, acende um cigarro. Dá um pra mim. Há
um tempo pude assistir um acontecimento desses que a gente preferiria estar
longe para não ver. Do tipo, poder fumar sem ter de olhar essas fotografias
horrorosas no maço de cigarros. O que vi? Você dirá que é um absurdo. Que
invento. Não importa. O importante é você calar para me ouvir, depois, se
quiser, comente do modo que puder.
Dias atrás vi um braço. Sim. Na verdade não vi,
percebi um braço. O braço escorava um corpo debruçado no parapeito de uma
janela. Havia uma casa. E as portas da casa e de dentro da casa estavam fechadas.
Um absurdo se apossou dos nervos daquele braço. Eu o percebia tremer. Não era
frio, nem medo. O corpo parecia reto, frio, mas o braço, não dois, mas um braço
apenas tremia, parecendo quente e agitado. Parado, meu olhar admirava aquela
inquietação latejando como se a aorta fosse rebentar a qualquer instante.
Permaneci ali com uma sensação calcinante de consciência do tempo que passava. Apoiava
minha vista na inquietação. A atmosfera do cômodo parecia indiferente às
emoções manifestadas pelo braço. Seria a pressão do hábito o que me detinha
ali?
O motivo todo era fútil, uma tolice. O braço tinha
deixado a casa ou a casa o havia colocado pra fora, não sei ao certo. Como eu
soube? Não importa. Eu estava lá, eu vi.
O braço parecia absorvido na luta pela vida, no
quarto, em que também olhava imagens através do espelho. Pobre corpo obrigado a
se defender do próprio braço. Era preciso mantê-lo, mas sem prestar-lhe muita
atenção. Nem a cama de sucupira talhada pelo artesão de Carangola, nem o tablet enviado por um amigo da Zona
Franca de Manaus chamavam a atenção. Revi passar de um lado a outro até
estacionar e sentir que o sol feria a vidraça da janela.
Lá fora um jardim cercava a entrada da casa. Ali
dentro todas as portas que se abriam davam para outros cômodos com portas e
janelas. Realidade que emprestava à percepção do braço uma sensibilidade
esquizofrênica. Vencidos esses detalhes...
- O ser humano adapta-se a tudo, Manuel.
- Uai, rapaz, essa frase é surrada, mas presta pra
agora. Ouça. A natureza se vale do meio para realizar todas as suas disposições.
É no antagonismo que vivemos. O braço, por exemplo, parecia que se agarrava a
esse tipo de ideia para não decair na miséria de um crime contra a vida.
Trancado no do corpo era como se soubesse que o tempo não criara para ele nem
uma mísera existência dessas que são suplementares e que vivem à sombra de
outras. Intuía que se houvesse um lugar no mundo ao qual estivesse destinado,
este surgiria da massa das coisas que constituem o habitual e que o tempo
continuava a correr docemente, indiferente ao braço. Triste, acocorado,
abraçado ao abdômen e com a cabeça recostada na parede, o corpo sentia nos
pulsos a percussão de uma música misteriosa que lhe fazia volver ao organismo
que respirava e deglutia suas células: tremia num esforço de vida.
- Miserável o ser humano que se adapta a tudo, né
Manuel?
- Sem se revoltar, talvez. Mas escuta, senão eu paro
de contar. Contra as mudanças que se lhe antepõem como condição para seguir
vivendo é que o homem revoltado parece agir. Já leu Camus? Bom, mas pelo modo
como percebi que se manifestava, o braço parecia sentir uma cruel
correspondência com o pensamento. Vagarosamente abandonou a posição em que
estava e passou a seguir o corpo, badalando feito o pendulo de um relógio.
- Esse jardim que existe lá fora...
- Menino, deixa contar. O jardim era uma coisa fora
da casa. Ele não chegava dentro, porque só existe lá fora, não pode ser nunca o
jardim para a casa, mas o jardim da casa, e serve só para enfeitar a fachada
para os outros verem a onde o braço mora. Esse jardim é dos outros.
- E o braço?
- Sei lá como isso surgiu. Era um corpo, uma ideia,
de repente um braço. Podia ser um nariz, uma peça de roupa, já leu Gogol? Em
torno do corpo uma atmosfera cinza triste e nela se fixava a imagem do braço, dos
objetos inanimados que começaram a adquirir vida própria, bem mais intensa do
que a que vivera. Sentia como se as coisas e as palavras tivessem mais vida a
oferecer ao mundo do que o próprio braço poderia viver para oferecer. E isto o
fazia suar num esforço para despertar a lembrança que o sufocasse de vez. Mas
cedia a cada instante por causa de uma folha ou outra que caía da copa da
árvore lá na rua, por causa de uma brisa de ar crispado no minúsculo vão de uma
trinca no vidro. O grande caminho que o corpo lhe emprestara estava ali,
coberto com a lama esturricada debaixo de um teto de sol.
Um movimento extraordinariamente rápido, brusco para
um braço abatido, volveu o corpo inteiro para a cama e sem mais o braço usou a
mão com os dedos e apanhou um livro que jazia sobre o edredom. “Você, como
pode!” Disse ao livro. “Ainda não acredito. Que absurdo! Um livro ser tomando
por sujeito de uma história, vá lá, mas assim, de um modo pernóstico”. Não pôde
crer que fosse o livro o sujeito de uma ação sem cabimento.
- Não pôde ou não quis? Afinal...
- Deixa contar. De pé, parado diante do espelho, comparou
ao mesmo tempo a personalidade que cria com as das outras pessoas com as quais
tinha convivido por mais tempo, se imaginando numa posição entre a atitude e a
beleza da forma das atitudes do corpo alheio. Mas logo reconheceu que essa
acuidade interior não era mais do que um reflexo adquirido pelo esforço de um
choque violento. Quis fazer ir embora, mas não conseguiu fazer, nem ir. Ficou ali
a vida inteira, se pudesse ter tido pelo menos um fiapo de vida para chamar de
inteira.
- Que tolice. Por que não diz logo isso tudo
aconteceu com...
- Por que não falo? Por que não vou...
- Imagino que chegaria a algum lugar.
- Sei que chegaria a algum lugar. Mas onde? Ah, sim,
aos termos finais disso que conto. Vamos tomar um café?
- Desculpe interromper. Sei que isso parece
importante para você, mas não vejo onde deseja chegar...
- Que diabo! Não importa chegar, o que importa é ir.
Esse é o maior dos problemas da espécie humana: querer um ponto final para
tudo, um final e um começo, quando o que vale é o caminho. Outro problema
parecer ser o de admitir a universalidade do direito. Cada um quer que as
coisas sejam seja assim ou assado. E o pior é que o homem, enquanto espécie,
ora tem necessidade de um senhor ora de ser senhor de alguém. E isso não se
resolve de modo definitivo. Era isso que queria dizer. O braço não se decidia.
Mas compreendo a que extremo uma simples atitude de autoconfissão poderia levar
uma pessoa desconfiada com o braço. No fundo, sei que sabia que tudo o mais
seria inútil, e o braço incomodava. Detesto café passando na hora. Nesse lugar
quente.
- Mas o que ia contando?
- Sim. O corpo, deitado na cama, media o tamanho do
acontecido com palavras de desespero. E na confusão do pensamento nascia como
que uma nova visão das coisas. Mesmo que se colocasse numa posição falsa e por
muito se esforçasse por atenuar a repulsa em relação aos outros, não conseguia
mais do que esconder o amargo e silencioso rancor plantado no coração. Será
possível? Mesmo que tentasse renovar a amizade com as pessoas da casa
encontraria, no fundo, o veneno daquela instituição inoculado no braço. Não se
constrói facilmente aquilo que um momento de irreflexão destruiu sem esforço.
Sabia que as palavras ausentes eram as essenciais. Como ignorar qualquer coisa
se aquela angústia nascia da sua própria carne?
O dilema absurdo que o abraçara na cama era a marca
de um acontecimento que o desnorteara para o resto dos seus dias. Deitado na
cama era um pavio sem pólvora, um navio sem bússola, uma história repleta de
conteúdo sem enredo, ou o que pode ser pior, com enredo tomado de empréstimo a um
narrador sem ambiente para encarnar as personagens: um braço e nada mais. Sua
existência era uma curiosa história. Não se sentia com direito de requerer
coisa alguma, aprendera, de pequeno, com a casa, a estrangular desejos
pessoais, nem sequer fazer ele próprio a sua pipa podia; empiná-la, então, era
sinal de surra no fim do dia. E até das surras guardava lembrança de que eram
para a sua proteção. Afinal de contas morria-se também de choque elétrico.
Sabia, lá no fundo da intimidade, que a diversão era
causa para as desventuras da casa, que já tinha preocupações demais no dia a
dia, e não podia se dar ao luxo de ter preocupações com uma criança que brinca.
O melhor, para a casa, sempre fora o pior para o braço: beliscões, chineladas,
vassouradas, raquetadas. Permaneceu intimidado por móveis, porta-retratos,
espelhos, prateleiras, tapetes, sabonetes, latrinas, e tudo o que há de se
respeitar cerimonialmente dentro de uma casa. Em suma, uma história de vida
pessoal que, até aquele momento, mergulhara o corpo na solidão de si mesmo em
busca de um tempo perdido que pudesse ser revivido. Resumo que tudo consistia
em nunca ter vivido bem dentro da própria casa. Era uma guerra da qual o
passado não emprestou nenhum exemplo.
Notei que o braço pareceu lançar um olhar em torno de
si, desejando esquecer o que o atormentava. O livro foi olhado com desdém, o tablet apanhado ao pé da cama para que
pudesse ouvir música. “Bob Dylan”... Ah, os livros, não poderia ser o livro a
causa da desgraça de uma pessoa. Não no século 21. Compreendera e até aceitara
a queima de livros pelos cristãos em Alexandria, mesmo que só para acertar uma
questão ou outra no vestibular. Conhecia razoavelmente as razões “racionais”
que levaram muitos alemães a queimar livros nos anos 30 e 40 do século passado.
Entendia a veracidade do mercado editorial na atualidade para editar livros de
autoajuda mais do que brochuras decentes das quais as pessoas mais precisam do
que gostam. Só não aceitava o fato definitivo que divorciara o braço do corpo e
este da casa, o fato de terem contaminado a vida em comum com a imagem perversa
de que aquele livro, agora jogado sob o lençol surrado da cama, era uma afronta
à vida, uma ameaça à arquitetura e a toda vida social, porque o teria afastado
do contato com as outras pessoas. Mas seria isso mesmo? Não seria isso uma
mentira inventada para aplainar uma dor que esburacava a existência durante
tanto tempo e da qual ainda não tinha entendido a origem?
No autofalante do tablet surgiam os acordes que surrupiaram o silêncio condicionado
nas paredes dos cômodos da casa. Dez minutos passados como se fossem um dia
inteiro e nenhuma música rolou inteira. Interrompia uma após a outra depois de
ouvir a introdução. Chateado de não poder ouvir música, era como se o braço se sentisse
uma cinza atirada ao vento. “Eles me odeiam. Disseram na minha cara que sentem
horror a esse tipo de gente que eu me tornei: ‘Não suportamos esse seu jeito’,
disseram, ‘não toleramos esse tipo de atitude!’. E me jogam na lata que é por
causa da casa, que eu tenho que entender”. Vai ver, foi a avó, matriarca da
família, que tornava os dias perdidos bancando a velha paralítica que nada
fazia que não fossem maldades para testar a fidelidade e docilidade canina dos
outros membros da casa.
Desligado o tablet,
a atenção voltou-se para o barulho do ventilador ligado num canto desde o dia
anterior. O braço agia como que se recordasse um monólogo que a velha
paralítica havia apresentado dias atrás: “Entre nós nunca existiu esse negócio
de ficar sentado o dia todo lendo. Aqui a gente trabalha. Ainda mais quando se
lê um livro só. Se você pelo menos estivesse escrevendo um para poder vender! Mas
não, não escreve e nem ganha dinheiro com isso. Você quer o quê? Tem um tanto
de professor formado nessa casa e que nunca leu nada. E você aí, se achando só
porque lê. Nunca vi esse seu braço fazer nada além segurar livro. E ainda
inventa de dar opinião na casa. O que é que você acha que pode aprender com
isso, com esse monte de papel amarelado? A vida... escute bem, a vida é outra
coisa”.
Tivesse ou não razão a velha paralítica, a
perturbação era intensa no corpo do braço desajustado. Tanto que a imaginação
da gente precisa dar uma volta inteira no parafuso a fim de apreender o quadro
dessa história. Se é que existe moldura para ele. A questão era outra. Os
livros de um modo geral surgiam apenas como trincheira. Aquele livro de papeis
amarelados era apenas um signo, um sinal de vida que se queria fazer inteligente
e que tanto ameaça os opróbrios da turba de espermatozoides que venceram a
corrida na estrutura da casa. Não significava outra coisa, pelo menos não para
o desespero do braço humano. O pior parecia ser não saber jamais se aquelas
suposições levantadas obedeciam somente o descontrole da fantasia de cada um
dos parentes. Era um horror velado o que havia revelado o cotidiano numa casa
de família, numa casa que amara.
Odiava o costume da casa de mentir a propósito de
tudo. Até mesmo sobre a felicidade. Mas fora isso que aprendera a fazer na vida
doméstica e dificilmente conseguia encarar o mundo sem calçar alguma mentira
deslavada nos pés antes de pisar no chão e misturar o corpo aos outros na rua.
Ninguém gosta de gente triste e, no mais das vezes, os tristes aparecem aos
olhos dos felizes como quem mendiga ou deseja roubar-lhes alguma coisa.
Sentia que nunca na vida teria coragem para a
verdade, e que mentiria a vida inteira. Que não morreria de excesso de
realidade. Talvez, tudo o que foi contado até aqui por este narrador metafísico
não passe de mentira. Mente? Juro que não. Pode confiar. Tudo que contei até
agora foi dito de coração aberto. E se conto é por que foi este o último pedido
de um moribundo, o último pedido de um jovem a quem um dia eu tive acesso, e a
quem devo minha vida. Por isso conto. Com respeito ao pedido de um morto.
Sim, mentiria pelo resto da vida só para não ter de
suportar as consequências pessoais da terrível verdade que não conseguia
experimentar. Se fosse amadurecido, creio, se tivesse um pouco da vivencia que
tenho agora, imagino, não mentiria, mas ocultaria a verdade. Sim, porque todos
que nos olham podem adivinhar nossos gestos. O que aprendemos ao longo da vida
é como nos ocultar. Conhece Lúcio Cardoso? Ele anotou num Diário que “o que
ocultamos, é o que importa, é o que somos”. Os loucos não ocultam nada –
conhece Foucault? Nietzsche? Só lê Marx? Freud? – pois bem, os loucos expressam
os gestos do mundo interior ao invés de repetirem os gestos do mundo aprendido,
seus gestos traduzem os signos do mundo secreto em que vivem. Você sabe. Mas
nada disso importa ou já não importa mais. A verdade é que para todos os
parentes próximos não passava de um inseto, de uma mosca que, como na canção
popular, perturbava o sono da casa com os gestos do seu braço.
“Mentir é o destino de todos os que aceitam a vida”.
Repito que prefiro ocultar a mentir. Mas não se trata de mim. E repetia um
refrão de uma canção do Walter Franco, adaptada diante do espelho, num ritual
quase esquizofrênico: preciso ter “a
mente aberta, a espinha ereta e o
coração tranquilo”. Já pensou? Mas isso também era uma mentira. Ou parecia
ser. Não aceitava a vida. No caso, o hábito de mentir emprestava ao pensamento
um colorido de realidade. Não podia ou não conseguia deixar de sorrir para a
imagem que via no espelho. Não aceitava a vida, já disse, porque lutava para
transformá-la de algum modo. Volvendo o olhar para a fissura que o sol abria na
janela senti como que se escapasse do corpo um suspiro, e imaginava: “será esse
triste movimento um jeito estranho e definitivo de não aceitar a vida?”.
O sol começou a arder, ainda não era meio dia e o
corpo abaixou junto ao pé direito da cama para o braço apanhar uma lata de
cigarros que ficava escondida debaixo do catre. Pensava: “então é isso agora;
tudo que sofro pode se resumir no fio da meada de um cilindro cônico. Está
aqui, em minhas mãos a salvação do mundo e, no entanto, para mim, isto é o
prólogo da morte”. Cada um que se crie. É por isso que precisamos da
coletividade. Mas era exatamente por ter se criado a si mesmo que o braço
perecia embolorado no corpo dentro de um quarto. Ignorava as razões dos outros,
menos a experiência do corpo. Se recusava a realidade, era por egoísmo, mas não
por medo. Sentia aversão aos aborrecimentos que a realidade poderia trazer. Ou
melhor, recusava a realidade por indolência, por preguiça de desdobrar. Via refletido
no espelho um corpo a lamentar e um braço a soerguer nada no vazio.
Quase sem coragem para reviver o tempo perdido. Era
ela, a verdade: a realidade definitiva de que fora sempre o único elemento estranho
naquele ambiente doméstico. Desde que tornara professor parecia com um fermento
mal lançado na massa. Esquisito ser que se escondia da família e dos parentes
em geral atrás das capas de livros. Geralmente, nos últimos meses, atrás da
capa daquele livro de paginas amareladas decompondo sobre a cama. “Dinheiro?”
Era inútil poder ou não ganhá-lo. A vida familiar com a qual sempre sonhara era
uma vida inatingível, a única coisa que aprendera a sonhar durante toda a vida.
Especialmente naquelas circunstâncias que havia experimentado a vida em
família. Se ao menos renunciasse ao que era e deixasse o corpo viver subsumido
nas trevas com que a sombra da matriarca da família embrulhava as pessoas. Mas
já não simpatizava mais com essa parenta. A quem a fortuna já havia deserdado da
vida. A quem só conseguia enxergar naquele momento íntimo da memória pessoal
como se fosse uma imagem de um monte de ruínas carcomidas e desmanteladas de
uma velha residência patriarcal. No entanto, um sopro vindo sabe-se lá de qual
profundeza que habita o interior do corpo humano lembrava de que ela é a avó. Não
sei, mas parece tanto o diabo essa velha, penso.
Sentia a solidão pesar sobre a vida e o tormento
dessas criaturas noturnas perdidas no abandono de si mesmas. Precisava saber
algo. Mas o quê? Que era feito de pedra, dos pedaços de pedra arrancados para
dar forma ao que havia tornado de pedra, a pedra? Quase concluía o óbvio de que
ninguém pode viver só, entregue apenas ao seu desencanto. Com o coração real
que pulsava no peito começava a compreender com que grande capacidade de se dar
era feito aquele braço, de que natureza era feito para o abandono de si e a
vitalidade do aperto de mão, do abraço, do encontro com a vida na ventura
alheia. O braço parecia que tinha uma alma. Sua alma, imaginava, era feita para
viver a vida alheia, era esta a sua vida, a vida toda. Uma espécie de signo.
Mas o braço não queria nem saber. Era jovem, viril, muscular.
Pudera compreender aquele sortilégio que o
distanciava das demais criaturas. Ser destinado ao mundo para permanecer à
parte, dentro de uma grandeza ou de uma miséria que não era nem a grandeza nem
a miséria habitual dos homens sonhadores. Vencendo a impressão que tivera, o
braço fez um movimento de recuo para fora da visão do espelho e abriu a janela
a fim de libertar o corpo do quarto e do cheiro das drogas fumadas e das drogas
trazidas à memória pela lembrança dos dias perdidos.
O livro, não, não pode ser o livro. Que mal pode
fazer às pessoas um livro? Uma pessoa comum lendo um livro pode até chamar a
atenção nesse mundo de televisores, mas daí um professor ler um livro não devia
ser estranho, muito menos aterrorizante a ponto de chegar a isto. Mas é. Aqui
estou diante do livro. E o que ele pode fazer? Objeto inerte? Mas um professor
pode fazer alguma coisa com um livro... ele faz? E o faz porque o livro o fez
fazer?
Ali estava ele, rapaz, diante do livro, um braço
armado. Lembra-se do filme O Nome da Rosa?
Mas seria absurdo supor que esse caso pudesse ter alguma similitude com o da crônica
medievalista de Umberto Ecco. Ao reparar uma figura imóvel na sombra que
projetara à parede reparei que olhar para dentro de si não projeta para fora o
que há dentro de si mesmo, mas imagens externas que a opinião dos outros exprimem
para dentro quando se deixa a porta de casa ou as janelas abertas para a rua. Como
que se fossem essas imagens vísceras nascidas com o braço. Era a sensação da solidão
em que vivia. Tão só que tudo o que tinha eram as experiências comentadas dos
outros. Consciência cruel a de se achar entregue a si mesmo, às suas próprias
forças, sem poder contar com uma gota de suor alheio. Terrível consciência
quando não se conhece tais forças, o valor que elas possuem e o equilíbrio que
delas provém. Resmungava. Resmungo.
Alegria dolorosa a de chegar a alguma consciência
agitada de sofrimentos sem formas. Voltei a notar o corpo pendurado sobre o
braço, apoiado no parapeito da janela. Penso na perversidade do tempo, nessa perversidade
que apodrece a carne e que, ao mesmo tempo, conserva no subterrâneo das pessoas
essas sombras incolores que se agitam de repente no subsolo da memória. A um
olhar ou um gesto, erguem-se empoeirados do sepulcro os dias esquecidos, só
para fazer sofrer aquele que se distanciava levado pela corrente d’uma onda de
cadáveres.
Que esse herói sem nome ou pessoalidade se
desconhecesse e precisasse de um autor para narrar sua fortuna, vá lá, é coisa
que a gente consegue entender. Que sofresse das reações impostas ao seu
espírito, compreenderia também. Mas que um caboclo se sentisse um braço ameaçado
de cair com o corpo inteiro nas grelhas da sua própria família é parte de um
mistério que se tornou um tormento. Sem saber encontrar a força de que
precisava, sentia entregar lentamente o que restava para a intrusão que aos
poucos fazia crer na vinda de alguma força sobrenatural para salvar o braço daquilo
que fizera com os restos da vida que fizeram para ele viver. Já não tenho mais
medo. Ao abandono!
Pela primeira vez em dias sinto ao contar essas
coisas uma vaga de certeza além de qualquer rancor. Uma verdade que se
cumpriria porque era mais forte do que qualquer sentimento, mesmo que acreditasse
ou amasse verdadeiramente qualquer sentimento. É na mentira que se vive bem
nesse mundo. Insisto. A verdade é para poucos, a verdade é para os que morrem
cedo demais e parecem viver tristes. Quereria mentir para ajustar o braço à
essa história, nessa sociedade de fantasias moles e sem sentido.
Enquanto sofrera a suposição de um rompimento com a casa,
a família se divertia com a realidade das ausências. Faziam piada e até
comentavam sobre a debilidade mental e motora, já que não lia outro livro fazia
meses e não saía de casa para as baladas por causa do tal do livro. Mas disto
preferiria que tivesse permanecido alheio. Como se a ligação com o mundo fosse
um ato fora da vontade, sentia que a barreira, a barricada, a trincheira cavada
entre o braço e a casa era definitivamente um sentimento. O livro não era um
objeto inanimado, como supusera antes, induzido pela brutalidade habitual da
família. Era um poder estranho, um poder de dominar o corpo, o braço. Se havia
medo, creio, constituía uma fraqueza de enfrentar as consequências dos atos
livres que o braço pudesse praticar com o corpo em nome da razão e do amor.
Agora, com o desenrolar dessa vivência, noto que o
braço se tornava impenetrável às injeções. Dificilmente saberia dizer quem é se
o topasse novamente no espelho. Mas os espelhos não mentem, enganam, mas não
deixam de dizer a verdade das formas que refletem. Preciso terminar. Ficamos
algum tempo debaixo do sol e sinto minhas carnes amolecerem. Essa pequena
história da vida que contei precisa chegar a um fim. Não sou eu coisa nenhuma.
No limite, não passo de um atorzinho de meia tigela, criado com refrigerante e
skine nos anos 80. Que direitos tenho sobre isso que digo? Nada. Foram eles que
me deram tudo. Sim, eles têm lá suas razões. Agiram, fizeram acontecer. E eu? Eu
assisti ao suicida, que num dia sai de si, da vida, para dar espaço às opiniões
das pessoas como eu, que preferem viver na companhia de cadáveres e zumbis ou
outros seres adjetos do que de gente de verdade. Então o que digo é que vagarosamente
o braço ergueu o corpo e atravessou o tronco inteiro pelo parapeito, usando o
mesmo braço como alavanca. Estava no segundo andar de um sobrado. Da altura dos
olhos até o chão eram uns seis metros. Os gestos lentos. De lentidão
premeditada. Como podia ser aquilo? Mas no útero da decisão de deixar o corpo cair
de cabeça no chão um movimento confuso dispôs o tempo, que surgiu a fim de
devorar tudo, inclusive o desejo de morrer. É possível que tenha descoberto
alguma coisa. Ninguém age e pensa impunemente nessa vida.
Confesso que o braço veio a mim como se viesse um
tuaregue beber numa fonte. Mas por quê? Por que essa necessidade de se exprimir,
e nessas condições, nessa situação, como se procurasse uma alma pura para suprir a sede da culpa? Sim, queria estancar a sede
do amor ferido pela presença daquelas horas sem luz. Conto, expresso repetidas
vezes, o que foi contado a mim. Claro que palavras a mais palavras a menos nem
tudo o que é visto pode ser dito, que dirá escrito. Há muito que se perde da
narrativa original, mas também há algum ganho de imaginação com a transcrição
daquilo que se ouve contar. Já leu os romances da Leida Reis? Personagens
abandonados pelos deuses, pela razão, entregues à loucura de viver com suas
vontades livres. Sei lá. Qualquer coisa desesperada fica no caminho para que
uma trágica percepção da vida se possa reconstruir com palavras. O braço
percebeu demasiado tarde que certos sonos são como outra vida. Os sofrimentos e
a negação da vida continuam. E dessa outra vida só se desperta para esconder um
ódio que a realidade estrangula no medo.
No fundo de tudo é o medo de si mesmo. É o medo de
permanecer sozinho, nesse mundo onde a dor de cada um é solitária e se realiza
solitária e morre solitária. Não dá nem pra falar de dor e sofrimento sem criar
um tom avermelhado de vergonha nas faces. Como disse antes, dor, sofrimento,
vida, desespero, eu interior (self),
enfim, cada um que se cuide, cada um que se crie. O que importa é fazermos isso
juntos. De resto é tudo mais ou menos a mesma coisa pra todos. Intestinos,
sucos gástricos, bactérias, fungos, células que se vão enquanto outras nascem,
só pra manter a destruição gradual e lenta que o tempo produz sobre todas as
coisas, até que elas morrem.
O tempo passa e o braço apodrece pela carne. Parece
gostar de se perturbar. Mas pelo menos não chegou ao ponto de flagelar a mão e acusar
com o dedo um pobre volume de papeis amarelados pelo desmantelo que foi a vida.
Pode muito bem ter chegado ao termo de suas descobertas íntimas através de um
imbróglio com a casa. Mas neste caso o que aconteceu foi uma mera faceta da
vida, faceta que usa a imbecilidade e a ignorância para fazer afirmar a
inteligência e a sutileza. Por fim, o braço se descobre e se encontra na
antítese de suas teses domésticas. O amanhã, ele desaparecerá dentro dos
livros, embebido em jornais.
Agora vamos à sombra, enquanto termino de contar o
horror da lucidez que me pega pela mão para me fazer sofrer. Nada importa individualmente, os sofrimentos de cada um a cada um pertence,
porque nada importa ao homem que esmaga o tempo na tranquilidade de um livro. Você,
a quem tenho me dirigido, e que com silêncio tem me prestado a atenção, pode
até dizer que essa história toda é ridícula. Mas quem poderá deixar de ser
ridículo quando luta com a razão, em nome do amor? Como assim, você dirá? Mas saiba que o progresso da espécie interessa ao indivíduo, mas o progresso do indivíduo não importa nada para a espécie. E se aperfeiçoamos a razão, não é pela razão, mas pela nossa vida animal, pela continuidade da nossa pobre condição humana. Isso vai longe e já temos de ir para a aula. Vamos. Que pode pensar um homem quando
está cheio de si mesmo? Que experiências pode dizer um homem quando as
experiências que possui são meras anotações extraídas de livros? Como esse
braço, que digo, é meu, viveu atolado na mentira! Sua verdade era apanhar
livros, empunhá-los para a esgrima com as ideias, ser professor. Foi sempre
assim, desde que ensinava história e geografia aos colegas de ginásio em troca
de cerveja. No mais, ele viveu atolado na mentira para poder suspirar essa
verdade encontrada no magistério. Morreu cedo, aos 28 anos de idade. Como corpo
que, por inteiro, apodrece dentro de casa e morre lançado ao vazio, ao nada. Encontrei-o
primeiro, ninguém mais o quis saber. Providenciei um funeral e a cremação.
Servi cerveja para os amigos cadáveres beberem o defunto e carne para provarem
seu último pedaço de companhia. Achei-o deitado como que se abraçasse o chão.
Ao lado do corpo o braço encostado no tablet
que rolava Behind the wall off Sleep,
do Black Sabbath. Dentro da casa, num canto da sala, um caderninho novo, com
uma única frase escrita à mão, dizendo: “a quem primeiro me encontrar, avise
aos amigos que miséria é ter um coração feito para o amor”.
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