quinta-feira, 21 de março de 2013

Há lá educação brasileira




Conto o que segue de um modo improvável. Ouvi dizer. Li. Ajudei a talhar, não sei como. Se eu fosse esperto, do tipo sabichão, metia logo um traje de psicografia nessa história e fechava os olhos ao escrito. Dizia logo que tinha sido obra de espírito maquinando minha mão. Mas eu suei feito cavalo para compor esse negócio. E acho que não iam acreditar em mim. Eu mesmo não acredito. Quem sou eu? Nisso que acabei de escrever e que agora dou para sua leitura existe um conto, palavras a mais palavras amenos, que se pode sustentar, como um combinado entre o que foi dito, escrito e lido. Daqui para adiante, se puder, a leitura pode dar algum sentido. Não porque me tenha faltado azeite pro que conto. Mas é porque é improvável um Zé Mané qualquer escrever nesse país. Confesso que fiquei espantado quando li o que me foi pedido para escrever. Sei lá. O caso é que acredito que valeu a pena guardar um pouco do que escutei e li para escrever. 
O que se diz, aqui, começou pela necessidade de gastar o tempo sem a televisão em casa. Noutro dia, numa dessas viagens a trabalho, fiquei encarregado de cobrir uma festa de peão no interior. Digo, uma festa comemorativa aos 74 anos de uma cidade, dessas que a gente conhece por "capital", mas que no fundo (e na superfície também) é uma cidade, dessas que existem no Brasil. Nas filmagens e gravações de entrevistas conhecemos muita gente. Personalidades locais, gente comum, figuras etc. Foram sete dias de cobertura e fiquei o tempo todo trabalhando. Não para o mesmo patrão, claro, que não sou tolo. Trabalho, de carteira assinada, para o Noticiário das... E quando faço essas viagens aproveito para praticar outras formas de jornalismo, sabe como é, freelancer. Nada de estranho acontecia durante o trabalho. Entre uma entrevista e outra aproveitava para gravar cenas de crianças comendo sobras das mesas, garçons enxotando a molecada para não "enfeiar" o lugar para os clientes poderem chegar, essas coisas que jornalista precisa fazer para ganhar uns trocados a mais e aproveitar promoções dessas coisas que são vendidas por aí. Sabe como é, a gente sente vontade de ter as coisas. 
Acontece que numa entrevista ou outra feita com moleques sujos e catarrentos ou adultos adulterados a gente conhece umas celebridades fora do script. Foi o caso, por exemplo, de um tal Mão Pelada, ladrão profissional de quem um dia (ainda) escrevo um conto. Neste, falo de um outro que conheci. Não era qualquer um, apesar da aparência. Digo, minto. Era qualquer um sim. Perguntei o nome dele e me disse  "Mané", ao que uma molecada ao lado ria, dizendo em coro, "é mentira, o nome dele é Mané Fedebosta". Era uma algazarra tão grande com aquele nome que o homem ao invés de esbravejar com os moleques me fez um sinal para sairmos dali. Fui. Chegamos num canto entre as mesas e barracas do parque de exposições começamos a conversar. Amenidades. Confesso que imaginei, diante da proximidade com aquele cara, que o cheiro de estrume que enfesta essas festas estava impregnado nele. Não sei. não cheirei de perto pra saber. Conversamos longamente. Dispensei meu iluminador e assistente dizendo a ele que naquele dia, acho que foi no quarto dia da festa, ele podia ir curtir o curral e os shows na arena do tatersal de elite. Paguei pinga e cerveja com espetinho para aquele homem de nome estranho e engraçado que me dispensou o trabalho repetido e me concentrei para ouvi-lo. De tudo o que ele me disse, creio, o importante é fazer notar que de um modo ou de outro, pondo pra fora ou pondo pra dentro, todo tipo de merda pode ser fertilizante.
Esperei ouvir banalidades. Coisas do tipo "bunda", "boca", "peito", "prexeca" e outras tantas que se ouve quando se frequenta lugares públicos em nosso país. Mas o homem me surpreendeu dizendo que tentava ser escritor. Que queria escrever um livro. Na hora pensei que era a bebida, mas achei engraçado imaginar um livro cujo autor assinasse Fedebosta. Claro que se recebesse um salário decente não ficaria ali, à cata de uma matéria que me pudesse valer uns reais por fora, ao estilo caixa dois. Confesso que mais do que o dinheiro isso me valeu uma escola. Quis saber sobre o seu nome e ele sapecou uma autobiografia que julguei digna de nota. 
Nome: Mané Fedebosta. Profissão: faztudo – em casa, no terreiro, cultiva um canteiro com minhocas do qual faz uso para vender humos para jardim. A alcunha de “bosteiro” o acompanha desde a infância, quando começou a criar minhocas num cercado improvisado próximo ao chiqueiro na propriedade dos pais. Cresceu entre os anos 70 e 80 na região do chamado Médio Norte goiano. Na infância dele eram muitos os adultos que pediam aos filhos para irem pegar minhocas para fazerem isca antes da pescaria do final de semana ou de algum fim de tarde à toa. Diziam aos meninos que “terra onde tem minhoca é terra boa!” E as crianças cresciam sabendo que minhoca produz húmus, que é fertilizante natural. Enquanto a criançada corria a encher latas de extrato de tomate ou de óleo de cozinha com minhocas sujas de terra, o pequeno Manoel Botero, filho de agricultores chegados do Triângulo Mineiro, entendeu que melhor do que tirar as minhocas da terra era juntá-las para ver no que é que davam. Deu, de cara, num apelido. Os meninos, que corriam e chutavam cabaça com ele no terreiro da Venda, deram de chama-lo de “bosteiro”, por causa da ideia que eles tinham sobre a prática do coleguinha. Para adiante, cresceram os meninos e Manoel herdou das terras do pai um pedaço de chão no qual morou e criou gado de leite e galinha para consumo da família, enquanto trabalhava para os outros como faz de tudo nas fazendas do norte de Goiás. O conhecido Fedebosta veio das conversas das patroas que iam visitar a esposa e ouviam dela pequenas queixas sem importância, sobre o cheiro do marido no fim do dia: “uai, gente, cês recramam dos marido dóceis atoa demais, ceis num sabe o que é que é tê todo dia um homi que chega em casa todo dia fedeno bosta de currar”. Quimera sem importância, mas que da língua das comadres passaram aos ouvidos dos compadres que, na venda, entre uma caçapa ou outra, rendiam risos e piadas uns com os outros contando que “o cumpadi Mané tem minhoca na cabeça, tanto que até a mulé dele crama que quando ele soa insima dela o suó febosta”.     

Em seguida me disse que "foi pruisso que eu pensei o pensamento que penso. Pensei duro. Cheguei de suar a ideia de pensá. Fui correndo pra frente do espeio pra ver como é que eu ficava quando pensava. Não deu puisquê na frente deleu já num pensava. Parecia queu tava erinventando. Voltei, peguei no lápis e pensei que pensar não adianta, tem é quescrever. Daí eu pensei de novo que escrevê também não leva a nada se numtiver alguém pra lê. Daí eu mesqueci d'queu mesmo leio e quando vi jatava escreveno. Gostei. Daí eu escrevi o que se pode ler e passei pra um amigo que é professor. Ele levou pra casa e depois, no outro dia, disse preu contá como escrevi prele vê se podia publicar num tal de blog. 'Não sei se vai dar certo', ele falou. Mas ele tumém falô que ia corrigir uma coisinha aqui outra ali, e tentá deixá do meu jeito o mais que ele dessa conta e pudesse deixar".

Ele me mostrou um monte de papel tirado do bolso lateral da calça. Maneou a cabeça e se bateu na perna com o chumaço de papel enrolado. disse que não queria mais saber e me entregou aquela resma manuscrita cheia de palavras e riscos. Comentou que não era mais aquilo. Que o professor tinha mudado muito, mudado tudo! Que não sabia mais se aquele era ele ou se tinha virado outro. Fiquei encabulado. Sem saber o que fazer, fiquei parado, olhando e ouvindo. Até que ele me narrou um sermão por eu não ter filmado nossa conversa e dispensado meu assistente. Disse que era tudo uma merda, atirou os papeis em mim e saiu bebendo. 

O leitor já deve ter notado que não houve a matéria para a qual eu contava ganhar uma grana. Isso eu ganhei com as entrevistas que fiz com um moleque de rua que filmei engraxado botinas na porta da boite que foi instalada no parque, perto do curral. E a quem eu tive de pagar um cachorro quente com refrigerante para me dizer o que eu precisava perguntar a fim de dar um ar de drama ao seu trabalho e condição. Com isso faturei três mil reais de uma produtora que documenta a perda da infância para o trabalho e que se mantém através de verbas do governo que são repassadas a uma ONG internacional, com sede em Madrid. Já os escritos daquele cara. Bom, para não desperdiçá-los, de todo, eu os reproduzo aqui, tal qual os havia atirado em mim, digitados conforme o que ele fez aos olhos da correção do professor que ele disse tê-lo ajudado a se encontrar. Por quê? Bem, isso é uma postura tão íntima. Mas direi. Reproduzo-os porque os li e de certo modo me identifiquei com as pretensões literárias daquele caboclo. Sabem como é, sou jornalista, e acho que as pretensões daquele cara não podiam ficar de vez desperdiçadas. Vai que...  

Não colocarei aspas, porque daqui para diante o leitor sabe que não serei apenas eu, mas ele(s)/nós, até o final. Ou, se preferir, o leitor poderá acreditar que é tudo obra minha e, quem sabe... me divulgar...

...uma senhora ria à toa na banca de pastel da feira de sábado: “Minha menina vai ser doutora em Enfermagem. Vai mandar nos enfermeiros dum hospital”. Disse isso quando o óleo da fritura escorria do pastel até alcançar a saia dela. Nem via. Pediu mais um de queijo com carne, pagou e saí comendo.
Será que na faculdade aprende o quê? Sei que a vida ensina. Quer dizer... Ora bolas, quem é que importa com a vida hoje em dia? Nem os padres. Na televisão passou o caso de um padre doido que sumiu do mapa voando nuns balões de festa. Gente maluca! Conheço gente que sofre só de pensar. Tive um tio que era assim: adorava novela porque exige menos esforço da mente, é só olhar. E tem programa que teoriza pra quem não olha direito. Ele dizia que bom mesmo é viver com as idéias prontas.
Sempre me disseram pra entrar na faculdade. Um dia eu fui, mas lá não tinha emprego. Tem diploma. E um estágio remunerado que me falaram que é pra quem tira nota boa. Não era pra mim. Pensei no diploma, o que é que eu faria com um troço desses depois? Usá-lo, de certo. Podia fazer alguma coisa com ele. Um adorno de parede. Ideia besta. Prestar concurso pra um cargo melhor. Dizem que um diploma muda a vida de muita gente. Será? Deixaria de ser o que sou? O que é que eu sou? Nem sei o que eu fui ontem, vou lá saber o que eu sou hoje! Mas escrevendo chego a pensar que acho que penso que preciso entrar no mundo das letras, saber de gramática. Nem que seja para ocupar um cargo. Quem sabe o de “fulano do RH” ou o de “beltrano disso e daquilo”.
Ter diploma. É preciso ter cargo, salário. É, o salário é que é bom. A não ser que seja diploma de respeito, assim, com anel e tudo. Disseram que na advocacia eles botam duas letras antes do nome de batismo que dão moral. Imagine só o que duas letras podem fazer de moral! Queria era o caminho mais curto. Parece que os enfermeiros conseguiram a graça que antes era só dos médicos e dos advogados. Agora já podem ser rebatizados no diploma. Acho que era isso que a senhora falava, distraída com boca cheia de pastel. Mas ser enfermeiro, mexer com sangue e limpar bosta de doente. Ah, não, eu só quero é ganhar dinheiro!
O importante pra ter diploma eu já tenho. Tirei o segundo grau. Posso entrar na faculdade. Mas qual? E pra fazer o quê? Só sei trabalhar. Na verdade mesmo eu nunca estudei de verdade.
No ginásio, com a Clementina, aprendi a fazer amor. Ela era filha do biscoiteiro da venda. Muito atenciosa com os colegas. Quando espremo os miolos e tento lembrar as aulas, só a imagem da Clementina me vem na mente... Clementina...
Da escola primária não tenho muitas lembranças. Ouvi meus pais dizerem que eu pulei etapa. Lembro-me é de pular muro. Sei lá. Ao menos era bom brincar no pátio. Tinha colega que levava brinquedo de casa e que depois emprestava pra gente, com medo de apanhar no final da aula.
As quatro primeiras séries eu fiz em oito anos. Ia pra escola com o uniforme que a minha mãe conseguiu ganhar da mãe d’outro aluno mais velho. No começo, a camiseta parecia uma camisola. Mas minha mãe disse que com o tempo ela se ajeitava. E ajeitou. Serviu só até eu completar a segunda série. Da terceira em diante ia pra escola só pra namorar, lanchar e jogar bola. Era legal dar olé nos meninos menores. Era respeitado. E até a quarta série ninguém brigava depois da aula sem antes pedir conselhos ou proteção pra mim. Essas coisas eu aprendi. Mas depois tive de sair da escola.
Foi nessa época que eu conheci a molecada no ginásio. E logo de cara me apareceu a Clementina. Acho que ela explica alguma coisa sobre eu não querer continuar a repetir os anos. Era estudiosa. Às vezes a gente inventava uns grupos de estudo e, como ela era dedicada pra ensinar, a gente acabava aprendendo alguma coisa antes das provas. Aprendi muito com ela nos quatro anos do ginásio. Aprendi, porque passei do ginásio. Lembro que todo final de ano, antes de entrar de férias, a Clementina me ajudava a estudar pras recuperações. Lá em casa já diziam que aquilo não serviria pra nada. 
De tanto mostrarem isso para mim, acabei convencido de que tava mesmo era apaixonado pela Clementina. Não era pelos estudos. Hoje em dia só me lembro dela: Clementina...
Depois, tive de parar de estudar. Não teve jeito. O mundo do trabalho é assim. Mais hora menos ora ele te arranca das brincadeiras e te mete uma ferramenta nas mãos. Também fui levado na marra pra dentro do Quartel. Os sargentos disseram que eu era mais um mocorongo que ia passar sem deixar rastro. “O passado” falavam, “só é digno para os heróis da nação”. Como sempre fui meio covarde na presença de autoridades masculinas vestidas de verde oliva acabei abraçando a disciplina. Acho que aquele ano foi decisivo para mim. Eu me dediquei nos exercícios e na obediência cega ao fuzil. Afinal, aquilo é tão ruim que nem os mocorongos arriscam repetir a dose.
Nunca mais ouvi falar da Clementina. Mas ainda me lembro dela. Sei lá. Conheci uns sujeitos que me arrumaram emprego de servente de pedreiro, e meti a cara na construção civil. Andava sujo nas ruas da cidade e quase ninguém me via passar. Viam sempre um traste; servente de pedreiro andando. Quando eu entrava num bar e pedia cerveja, todo mundo em volta olhava para mim como que se eles estivessem diante de um bêbado: “Oh, pinguço!”, era assim que me tratavam. Não. Minto. É assim até hoje. Não tanto, mas é. E eu nem queria parecer alguma coisa. Eu queria parecer comigo, com o que eu era. Mais eu era? O quê que eu era se eu nem sei se eu fui? Rezava. Hoje não rezo mais. Rezava e pedia a Deus pra me ajudar. Depois ficava com vergonha de Deus e pedia pra ele ajudar todo mundo. Sempre achei que parecer humilde podia dar alguma coisa. Emprego ou trabalho? Sei lá, vai. Seja o que for sempre pelejei pra me ensinar que é educado ser obediente. E feliz. Nunca furtei nada de ninguém que não merecesse ser furtado. Fui obediente aos que me podiam castigar duramente. E sempre distribuo sorrisos.
Quando voltei pra escola, já adulto, disseram que eu podia tirar o diploma de Ensino Médio em um ano. Achei graça, porque em um ano eu poderia dar conta de três. Só me convenci disso quando o professor de História disse que um presidente já tinha dado conta de fazer o país crescer cinqüenta anos em cinco. Acho que era o tal de Erlemeyer neyermeier, sei lá. O cara que fez Brasília. Daí eu empolguei, só não acreditei muito. Enchi os ouvidos de esperança e achei razoável que a escola formasse alunos mais velhos num modelo três em um.
No final do curso a diretora levou um médico para falar de exames na turma. Parece que era importante saber se a gente tinha doença e no que é que a gente tinha aptidão. Lembro até hoje daquele senhor: vestido de branco, cabeça rala e testa brilhosa. Era médico, mas também fazia a vez de psicólogo, ou orientador vocacional, vá saber o que era aquilo. Nem liguei, porque não tinha injeção. Também nem sabia o quê que era essa tal de aptidão. O senhor de branco com a cabeça rala e brilhosa falou comigo que a saúde pública precisava de homens como eu. Parecia um mago falando, um pai de santo, vai saber. O certo é que ele conseguia adivinhar o que a gente pensava. Queria tanto que minha mãe tivesse suportado a epidemia de dengue. Talvez essa notícia a animasse mais do que ver o filho trabalhando de voluntário da pátria, camuflado de pé de couve com caruncho dando a cara pra mosquito no meio do mato ou na construção civil.
Orgulho muito de ter sido apoiado por um doutor da mente a seguir carreira na saúde pública. Consegui ser aprovado num concurso para Oficial de Limpeza do Município e virei Gari. Aliás, é um cargo bastante digno, segundo a opinião do meu conselheiro intelectual. Mas não deu certo, não. O cargo era até bom, funcionário público, sabe como é. Mas o trabalho que dava não fazia o esforço valer a pena, não. Preferi ser servente de pedreiro porque não tinha de usar uniforme.
Acredito que é uma pena não existir mais o MOBRAL. Meu pai estudou lá, meus tios também. Foram levados pelo meu avô, primeiro da família a se destacar naquela casa de instrução pública. Quisera eu conseguir ser a terceira geração da família a brilhar num instituto de educação tão nobre como aquele. Poder arrumar um emprego depois. Emprego, porque trabalho eu já tenho demais. Me falta é cargo, que nem o desse pessoal que meche com dinheiro dos outros.
Afinal de contas, o que é que eu quero de verdade? Que indecisão! Meu avô saiu direto daquela escola para ir trabalhar com um deputado que era agricultor. Acho que era. Trabalhava com laranja. Eu era pequeno, mas lembro do meu avô que passava meses dentro de casa esperando entrar a época de safra, e só saía de quando em quando pra ir receber um dinheiro que ele falava que vinha da laranja.
Depois da morte do meu avô o meu pai e os meus tios (os irmãos dele) começaram a trabalhar para aquele velho. Mas não deu muito certo, não. Agora eu me lembro da minha mãe reclamar do preço das laranjas, era pouco e quase não dava pras despesas da casa. Chamava meu pai de malandro. Acho que foi por isso que o casamento deles terminou. Ela arranjou um emprego de garçonete à noite. Coitada, chegava lá em casa todo dia de manhã estropiada, reclamando da freguesia e das gorjetas dos bebuns. Mas enfim, foi assim que foi. Passou.
Hoje em dia sou eu quem tenta galgar uma posição social. Ter alguma coisa pra poder ser alguém. Diploma Superior. Pronto! Entrar no mercado. É isso o que a televisão me diz quando eu assisto à televisão. Nas ruas têm cartazes que chego a duvidar se existe papel suficiente no mundo pra imprimir tanto diploma. Será possível? Sei escrever meu nome e tenho disposição para frequentar aulas. Não todas, mas a maioria eu acho que agüento. Depois, o que vale mesmo é ser efetivo, ter presença, deixar que me vejam. Preciso fazer valer o esforço, porque não deve ser mole pra um adulto ficar sentado escutando o outro falar. Nem criança agüenta! Basta não abusar das faltas. Talvez consiga algum diploma de curso superior em até dois anos. O professor põe pimenta, mas sei lá.
Parece que não existe mais nada pra aprender! Essa me parece ser a única vantagem de ter cursado o primário oito anos. Porque tanto no ginásio quanto no supletivo, pude ver que o que se ensina é o mesmo: desde a primeira até a quarta série o negócio é escrever o nome, desenhar árvore genealógica, contar números e classes de seres vivos. Tá certo, uns professores tentam sofisticar os conteúdos, disfarçando para não parecerem repetitivos. Alguns desenham linhas e metem números nelas pra gente poder contar, ou pra mais ou pra menos. Para quê serve tudo isso? Num sei, só acho que é pra passar no tal do vestibular. Aí, na faculdade, é provável que a gente aprenda alguma coisa de verdade daquilo que é mistério.
Já vi professor usar microfone para falar com o pessoal na sala de aula. Parecia ser importante, andando de um lado pra outro, gesticulando quinem pastor pregando pra um montão de gente num galpão. Ele até parecia querer falar alguma coisa. Contar alguma história. Tinha de ser conciliador entre o desejo da gente de aprender alguma coisa com o da escola de lucrar o máximo com o mínimo de gente pra trabalhar. Escola paga sabe como é... É isso aí. Uma bêbada que fala pelos cotovelos.
Educar pode ser trabalho de obreiro, já pensei isso uma vez. A classe pode até aumentar o contingente que o professor continua sendo só um. Mas eu, ser professor, sai fora! Ter um mestre de obras que vem de quando em quando olhar a construção do material é uma coisa. Ficar aguentando um monte de gente que nem eu, e tudo duma vez, nem de dó! Erguer conhecimento junto da gente do povo é o mesmo que erguer casa popular. É um troço afoito, rápido. Hoje em dia é tudo em bloco de encaixar. Custo baixo, cômodo estreito e depois que fica pronta até parece que vai cair. Depois, quem quiser que aumente sem limite. É por conta própria. O vestibular escolhe quem assina o serviço que a gente faz.
Mesmo assim acho as casas populares mais reais que a educação. Creio que se as pessoas pudessem escolher mais também errariam mais e por isso escolheriam melhor. Muitas pessoas gostam de dizer que são coletivas, que gostam de estar junto. Que nada. Dá pena ver as pessoas que só gostam disso quando são elas que estão ditando as coisas do relacionamento. Uma objeção que você faz e pronto, já passam a achar defeitos. Quem não se reduz ao que o outro quer se lasca, sai da relação como o chato, o resmungão que é sempre do contra. Pra mim, hoje dia acho que quem segue alguém nada segue, porque também nada procura.
Mão de obra. É o que espero das escolas! Que elas criem mão de obra qualificada! Essa palavra é boa. O pensamento também. Aprendo isso no supletivo, nas aulas de Geografia. Nunca pensei tantas possibilidades para ela como agora. A Geografia. Será mais um suspensório do que um acessório na minha vida. Educar segura as calças. A Geografia ajuda a dar rumo, direção. Mas na escola a gente não desnuda. Só veste.
Qualificado. Isso é qualificado pra vida? No exercício da minha existência conjugo o verbo liberdade e vejo que ela só existe para poucos, que são livres pra fazer nada, ficar de papo para o ar dando uma de Pilatos.
Uma coisa eu aprendi no tempo da caserna, o controle do corpo. Na escola habilitam a gente para exercer alguma atividade produtiva, obedecer. E isso é bom porque parece. Não quero dizer que o trabalhador é permanente na obediência. Quero só dizer que o querer do meu querer é o que nem sei o quê que me dizem que eu preciso querer. Queria era poder deixar registrado que um dia eu existi e que os versos da educação brasileira me inspiraram até aqui. Sei lá. Um dia desses ouvi um cara cantar uma música sobre um tal Chapoliom, Chatobriom, um troço assim. Faltava um monte de dente na boca dele. Também faltam na minha boca uns dentes pra dizer um monte de palavras. Escrevo. Ponho no papel quase do jeito que vem na boca. Acho que foi um tal de Andrade, não sei das quantas Andrade que pensa que isso é mania de criancice: dada pra cá, dada pra lá. Do jeito que vem vai. Assim, oh! Ai eu escrevo, acho que escrevi. Sei lá. Se alguém além de mim conseguir ler é porque eu escrevi. Será?

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