domingo, 30 de dezembro de 2012

O dia em que o Papai Noel virou fumaça





De certo há o que se debater e discutir sobre os mitos e símbolos, antigos e modernos, como a Caixa de Pandora, Sísifo, o Coelhinho da Páscoa ou o Papei Noel. Especialmente pelo caráter pedagógico que deles se pode fazer uso. Mas não fique inquieto, leitor, o narrador jura que não vai fazê-lo desperdiçar seu preciso tempo com a instituição da Pedagogia. O leitor que for safo lembrará que na Academia há o que se perder ou sonhar ganhar com querelas sobre a importância e vitalidade da história para a vida. Que se há disputa para afirmar uma História científica contra a história vivida isso acontece mais por opção do que por necessidade. Já que se resolve esse tipo de pendenga com facilidade quando se lançam os dados com boa vontade e satisfação. Existem experiências que se registra e depois se conta sobre elas e as experiências que não são registradas, mas que nem por isso deixam de ser contadas – o que já dá numa forma de registro. É o caso do que é escrito e do que é falado. Sendo um o documento para a História e o outro a lembrança ou esquecimento para a história que tende a deteriorar, há os que defendem um contra o outro e os que se esforçam para corrigir tais esforços de defesa e ataque. O certo é que entre um verdadeiro e falso, entre uma erudição documentada e uma erudição fictícia, reside uma coisinha chamada imaginação. O narrador, em todo caso, acredita que não haverá tolo o bastante nesse meio para acreditar na ausência da imaginação no ato de se arquivar um acontecimento, para produzir dele um documento. Talvez seja por isso que insiste nesse tipo de oferta, que pode ser qualquer coisa, menos inverdade ou falsidade induzida.

O que aconteceu se deu na penúltima noite do ano de 2012. Ia quente, já tarde. Tomando a fresca da noite, aos olhos da lua, acariciava a gatinha manhosa que brincava com as plantas no jardim para ver se ronronava. Não deu. No mais, entre a brisa do norte e os odores do sul, assuntavam em um alpendre dois senhores distintos. Conversa que não passa de portão, de beira de esquina. Papo de compadre que ganhou em gravidade quando os ouvidos do narrador se entenderam no final. Está certo que não é caso de briga o que o se tentará contar. Mas que dá muita briga isso dá.

- É, a gente veve cumpoco. Vim pra cá sem nada. Mas com plano de ficá. Passei aqui uns anos atrás e gostei. Daí falei pra mim que o dia que eu aposentasse vinha morar aqui. Achei aqui sossegado. Bão de viver.
- É. Eu também achei isso quando vim pra cá. Nos primeiros dias. Pensei que fosse ser tranquilo...
- Tinha uma mulé que eu conheci lá no garimpo...
- Onde?!
- No garimpo...
- Não, onde fica, que lugar...
- Ah, o garimpo, era ali em Santa Helena. Mas agora acabou. Veio a mineradora...
- Sei.
- Então, tinha lá uma mulé que eu gostava dela. Daí ela falô que era daqui. E um dia eu ia passano ai nessa estrada e berei pra cá. Fiquei uns dia com ela. Tinha umas menina. A gente panhô amizade, sabcumé...
- Sei.
- Dai, seu moço. Rapaz. Num sei nem cumé que fala. Gostei. Falei pra mim: “Ah, vovim pra cá, moraqui”. Dai eu vim. Aposentadoria saiu. Eu vim.
- E tá gostando, sr. Paulo?
- Ah, sô, tô nada. A mulé sumiu. Ligo outro dia pedino dinheiro. Pois um menino pra falar comigo no telefone dizendo que é meu fio. Mandei pra ele uns R$ 600, 00. Tirei o chipe do celular, butei outro, nunca mais ligô! Tô pensano que nuns seis meis eu mudo daqui. Sei não. Violência demais. Num conheço ninguém. Preciso disso não. Num tem jeito nem da gente viajá.
- É... chega os feriados e a gente tem de ficar em casa.
- Pois é, sô. Cê vê! Tô aposentado, com dinheiro pra viaja... precisano visita minha mãe. Ele já vai fazer 92 anos. Tem 26 anos que eu num vejo ela. Fica me cobrano. Esse ano vô têdilá. Mas cumé que viaja e deixa a casa ai?
- É. A polícia me contou que “Aqui é assim mesmo”, que “Quem viaja contrata segurança privada pra tomar conta da casa”, que “Quando tem coisa de valor é bom levar junto na viajem”. Esses coisas. Não quiseram nem me atender quando fui lá na delegacia. Disseram que tinha de vestir roupa direito. Contei que tinha chegado de viajem. Que tinha viajado sem camiseta, por causa do calor. Que não tinha roupa pra vestir porque os ladrões tinham levado tudo. Sabe o que a escrevente falou pra mim? Disse, “Pois é, o senhor primeiro precisa se vestir de forma adequada pra entrar numa delegacia”. Sr. Paulo, o sangue ferveu na hora, olhei pra um policial que tava lá parado, olhando, e perguntei se ele não podia vir em casa comigo pra ver o estrago que os ladrões tinham feito, pra fazer a ocorrência, tirar fotos, ver a cena do crime. Sabe o que ele fez? Olhou assim pra mim, oh, com cara de paisagem, dizendo que “Não assim assim, não, aqui a gente trabalha direito. Não temos nada que investigar lá na sua casa enquanto não tiver um Boletim de Ocorrência. E pra fazer o B. O. o sr. tem ir lá na sua casa, vestir uma roupa adequada ...
- Hum, sei...
- Seu Paulo, o sangue ferveu. Disse que queria falar com o delegado de plantão, me disseram que não podia porque não estava vestido “adequadamente” para falar com o delegado. Dai eu sai de lá puto da vida. Não vi mais nada. Lembrei que tinha deixado a esposa e o filho em casa, sozinhos, e imaginei se não tinha gente escondida dentro da casa. Fiquei mais puto ainda, só que comigo. Pensei: “Por que é que eu falei pra ela vir morar aqui comigo? Porque foi que eu vim morar aqui, nesse lugar, que não tem nem rede de esgoto? E agora estou aqui, na delegacia, sabendo de antemão que não tem nem mais do que dois ou três policiais nessa cidade pra investigar os crimes, que nem som automotivo essa polícia daqui consegue deter?” Seu Paulo, quando vi já tinha dado uma bicuda numa cadeira dessas de plástico, estilo de bar. E só tava os pedaços dela no chão.
- Ih!
- Então, dai o delegado me ouviu, sei lá. Mandou me chamar lá fora. Disse que ia conversar comigo. Mas a merda já tava feita. Entrei lá dentro e pediram identidade. Disseram que iam me indiciar. Que eu tinha depredado patrimônio do Estado. Que aquilo não era jeito de se chagar numa delegacia. Tentei argumentar... mas daí chegou um legista lá, tinha resolvido um caso de seis meses, parece. Acho que foi a ossada de um taxista que ele tava examinando. Disse que tinha de falar com o delegado sobre o caso e eles me dispensaram. Só mais tarde é que voltei lá pra fazer o B.O., já com a PM junto.
- Pois é. Eu, quando tive de viaja esses tempo, tive de deixa a televisão aqui com a Dona Menina. Aqui, na casa dela. Ela tomô de conta dos meus trem. Falô pra mim: “Oia, seu Paulo, o povo aqui roba mesmo! Se tiver coisa de valor é mió o senhô dexá aqui na minha casa. Que essa gentinha aqui, oh! Esrobames!”
- Eu que sei...
- E esse Natal foi assimes? Levaro tudo que tinhai?
- Levaram até minhas cuecas sr. Paulo. E ainda cagaram na casa toda, mijaram pra todo lado. Fizeram uma miséria aqui dentro sr...
- E a Puliça nunvei...
- Não.
- Pois é. A gente até viu o vidro quebrado ai, de dia. Era meio-dia. O rapaz da piscina veio ai, disse que chamou no interfone, que não tinha ninguém e daí ele bateu na Dona Menina. Chamou na casa dela, falou que o vidro tava aberto. Quer dizer, que o vidro tava quebrado e a janela tava aberta. A gente num escutô nada. Mas ligamo pra puliça, 190. Daí eles perguntaro se a gente tinha a chave pra entrar. A gente falo que não,  porque não tinha. Dai eles falaram que não pudiam vir, porque não tinha ninguém em casa. Mas num sei não, viu, se os ladrão entro, a puliça num ia entrar tomem?
- Pois é sr. Paulo, e eles quebraram o vidro. Entreram, largaram as luzes acessas. Mexeram em tudo. Reviraram tudo, sr. Paulo...
- É, bandido é issimes. Eles faz o que qué! E puliça concorda cueles. E tomem aqui a rua é escura. Esse vizim ai, oh... cuessa árvore ai. Isso tira a lumiação da luz tudo do poste. Isso tinha era que manda podar. A prefeitura tinha de ve isso ai. Mas ninguém qué nada. Por isso eu vô é imbora daqui. Cidade que ficô esquisita! E num tem nem empresa aqui... e esse povo fala de dobrá a população. Faz bairro, esperando gente. Cê tá é besta.
- É, mas já tem até um loteamento pros lados de lá da cidade...
- É, mas isso ai num anda não seu moço.
- Senhor acha?
- Ah, isso não tem pé nem cabeça, nem rede de esgoto tem na cidade, vai fazê bairro novo... Pra quê? Cê anda nas rua e tem um monte de casa parada, sem uso, pra vende. Num vende! Esse povo daqui fico foi doido. Foi só o pessoal da ferrovia sai, “sembora”, que ficô esse paradão de casa ai vazia. E os dono num qué nem sabe não. O preço do aluguer de casa tá na pedida de meisalário, um salário...
- É, quando eu cheguei aqui qualquer tapera de três quartos, caindo aos pedaços, tava nessa média de preço: “um salário”, diziam os donos. Teve um caso que a dona até ficou brava comigo, quando eu perguntei pra ela se ao invés de pagar aluguel ela não preferira que eu assinasse a Carteira de Trabalho dela.
- A Cartera é? Mascebesta homi... E isso é asim, isso é absurdomes... e esse povo inda num planta, num trabalha. Esse povo daqui. Cê vai lá pro nordeste é gente plantano tumate e fruta e tal, e aqui... aqui essa miséria. Tem que comprar lá de Goiânia. Vim num sei quantos quilômetros viajando de caminhão pra chegar aqui em Porangatu.
- Mas tem umas hortas nas redondezas da cidade...
- Cê tá besta, homi. Só alface, mais nada... não tem um tumate...
- Não, tem uma couves também...
- Marrapáis, cê num acha um tomate aqui pra comprar que não tem de vim lá de baxo. Esse povo fica aqui é bestano. Terra aqui pra esse norte de Goiás é pasto. Parece inté que aui num veve gente não, só boi e vaca.
- O pessoal agora planta soja...
- Má... Cê num vê esses homi e essas mulé todo dia nusbuteco, bebeno, fumano, drogano. Essa cidade tá é morreno e esse povo acha que veve num lugar. Isso aqui num existe não! A soja desse povo aqui é pra silo, cê vê... E essa rua nossa aquimes, o tanto de rapizim que passa cuncara de zumbi, o dia todo, todo dia. E esses menino dali de baxo. Esses menino estuda?
- Acho que estudam sr. Paulo. Já ví eles passarem aqui de uniforme.
- Mamoço, esses menino estudam não. Isso é fio de gente malandra. Eles fica ai na malandrage. Isturdia desse pegaram uma égua ai num sei de quem e robaro. Trucero pra ali, oh, pra esse lote ai e fizeram até um cercado pra ela. O dono veio atrás e a mãe dos menino ficou foi brava com o moço. Disse que os fio dela não era ladrão. Que ia chama a polícia. Que o homi tava ofendeno os fio dela, e tal. Cê precisa de vê...
- Uai, sr. Paulo, fiquei sabendo não. Também fico pouco em casa. E quando eu tô aqui fico lá pra dentro, estudando, trabalhando, arrumando alguma coisa.
- Mai é. Por isso eu desgostei. Vimpra cá achano uma coisa e é otra...
- E nesse fim de ano o sr. Vai ficar aqui?
- Pois é. Cumé que viaja? Ceis tamem vão?
- Vamos! Quer dizer, vamos ficar. Ah, depois desse Natal...
- E eles num levaram num foi poco né!
- Quase tudo sr. Paulo, quase tudo. O que dava pra levar nas mãos eles levaram. Tudo que dava pra passar pela janela.
- Maios livro fico? O sofá? Cama?
- Pois é, não foi pouco, não!
- Teve muito, né?
- Hum!
- Cê que o diga. Mais me conta ai, cumé que foi...
- Pai!!!
- Espera ai sr. Paulo. Oi! Tô aqui fora conversando com o sr. Paulo. Esse menino. Tá nem ligando!
- Criança é assimes...
- Oi! Olá. Papai, vem pra dentro. Já tá quase na hora do ladrão passar.
- Ai ai ai... tá vendo só sr. Paulo?
- Mas diz ai sô menino, cumé que foi seu natal. O Papai Noel te visito?.
- Uai... dan, foi bom. Mas eu nunca mais vou esquecer quando a gente chegou. Eu tava esperando pra abrir os presentes na árvore de natal. E quando a gente chegou aqui em casa eu já não tinha mais brinquedo nenhum, e o Papai Noel tinha fumado crack em cima de uma caixa, lá no meu quarto, de verdade...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Conto de Escola ou uma Memória de Sala de Aula


O expediente das carrancas foi interrompido pelas brincadeiras de fim de ano em sala de aula. Para o narrador, até hoje, continuam poucas as chances de ser melhor ou pior do que se conseguiu ser até novembro. Há quem jura ser capaz de melhorar as notas no próximo ano. E quem sabe, há os que melhoram no grito aquilo que se espera melhorar em silêncio. Mas isto se o professor puder compreender, ou ajudar, o que dá quase no mesmo. Fosse como fosse, o ano de 2012 foi. Dele mesmo quase nada ia reter, não fosse o acontecimento, o inesperado.
É costume pra tudo que é lugar brincar de amigo invisível ou amigo oculto no fim do ano. Isso já ficou tão comum que parece difícil escapar a uma criticazinha ou a um olhar seco de alguém quando se tira o corpo fora. Se “não vou brincar” tem um tanto de gente querendo saber se estou duro ou se vou viajar para a praia ou outro lugar. Se “vou brincar” corre logo uma listinha de presentes para que eu possa notar o que os outros querem e anotar o que eu desejo ganhar.
O convite feito pelos alunos foi de tal modo despretensioso aos olhos do professor que ele aceitou imediatamente. Sabe-se lá porque aceitou. Tem coisas que professor não sabe. O narrador só pode supor que por causa de alguma força dessas que emergem dos subterrâneos cinza triste que compõe a atmosfera do Eu do professor dividido na periferia do capitalismo, abandonado por Deus e entregue aos deuses dos homens, a si mesmo e aos outros que o compõem feito espelho. Importa é que o professor aceitou o convite e, por isso, aconteceu. O que aconteceu? É disto que essa memória veio tratar.
Brincar de amigo secreto presume o óbvio: comprar e ganhar presentes. É mais uma cerimônia do que um acontecimento burguês. Esse é um palpite de que é uma cerimônia religiosa da fé burguesa em homenagem ao mito da amabilidade humana, quer dizer, é só uma opinião. O fato, o acontecimento, a experiência a que se pode chamar conhecimento escolar é diverso da opinião. Depreende dele a novidade, o não habitual, o caráter histórico que merece um lugarzinho no arquivo da memória escolar burguesa. Trata-se da trama, da urdidura com que foi elaborada. Vejamos juntos, narrador e leitor, o que aconteceu e depois cada qual que se entenda como puder com o dito acontecimento.
O professor entra na sala de aula do 2º ano de História da UEG na unidade universitária de Porangatu. É mês de novembro e os alunos inalam o clima de verificação da aprendizagem. Convidado a participar da brincadeira do amigo secreto o professor diz “sim”. Imediatamente, os alunos que o cercam sorriem e mandam pôr lá – no papelzinho – o nome do professor. O clima festivo desloca a apreensão pela atividade avaliativa: “Ah, professor, deixa essa atividade para o final da aula. A gente vai ter de fazer o texto da avaliado em casa mesmo”.
Acordados, professor e alunos começam os trabalhos daquela noite como ode ao consumo. “Então vamos combinar os presentes” diz uma aluna. “Tem de ser num valor acima de vinte a abaixo de cinquenta reais” diz outra. “Desse jeito todo mundo dá e recebe presente bom” justifica uma terceira. “É melhor que fique tudo mais ou menos no mesmo preço” comenta um rapaz na fila do canto. “Eu acho que é bom”, palpita outro escorado na janela enquanto dobra uma folha de caderno para improvisar um leque. “É, isso mesmo!”, diz o coro das vozes da maioria. “Então, se é assim, eu quero um molinete, ou uma vara de pescar” diz o professor em tom provocativo. “Uma vara e um molinete?” questiona uma aluna com olhar de sapeca. “Mas se puder, pode ser uma canoa”, provoca o professor. “Com remo ou a motor?” ironiza o aluno que se abana com o leque de papel. “A motor, é claro”, responde o professor. Ao que a aluna que distribui os papeizinhos questiona: “Tudo isso só pra comer um peixe?” “Sim”, responde o professor com aparência de lógico. Ao que a aluna com olhar de sapeca interrompe com gestos de liderança: “Oh, gente, então quem sair com o professor compra um peixe pra ele”...
A turma era só rizada quando a aluna com olhar sapeca transfigurou a face para parecer mais com o que ela é no cotidiano da sala de aula, e sapecou: “Gente, acho melhor passarmos uma lista para cada um anotar o que deseja ganhar! Assim fica mais fácil pra gente escolher, porque não é todo mundo que conhece um ao outro, e a gente pode sair com quem não conhece direito”. A maioria tornou a concordar.
Calado, o professor começa a se preparar para fazer a chamada quando um aluno do fundo chama a atenção para si gritando: “Eu preciso de um facão!” e justifica: “É que lá na roça o peão pegou o meu esse fim de semana e acabou com o corte dele, pra não falar do cabo que já tá uma miséria”. Os alunos riem, o professor sorri com um canto de boca, e o rapaz do leque emenda: “Uai, se é assim, eu preciso de uma galinha botadeira! As lá de casa estão fracas demais e eu já penso em cozinhar uma na pressão”.
O zum-zum-zum da turma é logo interrompido por um riso coletivo. Com ar de surpreendido, o professor ergue os olhos para a turma e o que vê é uma sala de aula repleta de trabalhadores e trabalhadoras. “Eu quero trocar o presente que anotei ai no papel da lista. Apaga ai no meu nome o perfume que anotei e põe ai um saco de polvilho. Esses fins de ano a gente usa isso demais lá em casa”, comenta uma moça. “Pra mim pode ser uma muda de gueiroba, mas se não tiver, serve camarguinho mesmo”, retruca um rapaz.
As necessidades e preferências iam se acumulando uma atrás da outra. Era aluno que precisava de botina, outro que preferia uma galocha, um e outro que necessitavam de algum tipo de muda pra plantar no jardim ou no pomar e os que se contentariam em ganhar uma garrafa de murici curtido na pinga ou uma banda de leitão ou caititu pra passar o ano novo mastigando. A novidade surpreendia a todos que naquele momento esperavam ouvir as banalidades de sempre em meio a uma brincadeira de feição puramente comercial. O professor entrou na jogada e pediu logo um frango caipira, limpo, pronto pra ir pra panela.
No dia da revelação e entrega dos presentes quase não se cumpriu o combinado. Teve o que ganhou uma faca e disse mirando o professor que “é de matar mineiro”, teve o que ganhou um canivete de 12 peças, o que ganhou uma bússola, o que ganhou uma coletânea de livros fotocopiados e encadernados, a que ganhou mudas de Dipladênia e Tumbérgia e a que ganhou uma muda que o professor esqueceu o nome, mas que o narrador arrisca ser Congea Tormentosa. No mais, trocaram-se presentes como de costume: coisas de plástico ou de tecido. A turma achou graça, confraternizou comendo galinhada com pequi, e a aluna sapeca comentou, em meio às bocas que mastigavam, que “o professor precisava mesmo de uma bermuda nova pra vir dar aula, essas que ele usa já estão velhas... parece até que ele dá aula na roça”.