sexta-feira, 22 de março de 2013

UM CONTRA O OUTRO E DEUS CONTRA TODOS



Sinto regozijo ao ler e ouvir na rede que todos concordam que é preciso viver o tempo presente: “a gente tem é de viver o momento, e o momento é o agora”. Especialmente porque sou historiador, e principalmente porque me alimento com salário de professor de História, noto que o nobre ofício tem lá sua importância para todos os contatos que pesquei. Conscientes disto ou não, estão todos de acordo com a necessidade de viver cada instante da vida!
Espio os noticiários armado com o pente de Walter Benjamin, com o qual penteio a história a contrapelo. Madrugada passada dormia enquanto o sr. A, o carteiro, atirava em minha casa um bloco de papel concreto. Sobressaltado, levantei da cama e corri ao portão para apanhar a Carta. Era um documento petrificado, semelhante a um monumento. Esfreguei os olhos e notei que aquilo vinha endereçado a qualquer um. Isso não é meu, falei. Mas aí o carteiro já tinha ido embora. Procurei o remetente e notei o nome naquela fatídica Carta: Caminha.
Andei um passo, recuei uns dois ou três. O cão veio. Sentei no chão para entender. Não, de pé eu já sabia. Sentei para me enganar. Não deu. O cão farejou, rosnou. Levantei e voltei para dentro. Apanhei o martelo de bife a fim de despedaçar aquele tijolo. Não deu, faria muito barulho e tenho criança dormindo em casa. É preciso acudir os sonhos dos que sonham.
Reli linha por linha, palavra por palavra a Carta do Descobrimento e tive a sensação de ter em mãos um contrato imobiliário: terra à vista! Já não dava mais prazo. Liguei o computador e nas redes sociais a tribo dos cariocas chamava a acudir a dos maracanãs. Venham ver, venham ver. Venham ver! Vi. Vimos, os que viram. A armada de dom João encarnada de preto e azul marinho celestial pronta a abater os inimigos da Copa que ameaçavam com suas flechas e parangolés de penas a pira dos deuses olímpicos. No dia 22 de março de 2013 o Brasil foi descoberto 500 vezes. Foi como que numa sensação de pertença a todos os tempos vividos. Atolado em meio a lama numa ampulheta.  
O que me levou à força a pensar coisas do tipo que o instante do "agora" (o imediato) é o momento relativo entre os tempos pretérito e futuro (mediato); o constante que não é mais, porque já foi ou poderá vir-a-ser. (O tempo é uma convenção social. Quem busca por ele nalgum lugar dá com os "burros n'água". Não é uma matéria presente na Natureza, mas uma forma de percepção relativa à duração das coisas: uma palavra, no limite, que designa formas de determinação da vida humana em sociedade. O tempo é uma convenção social e está representado em objetos, como o relógio ou o calendário). Da forma apresentada pelo "nosso" senso comum o instante é imediato e dá a sensação de que não dura nunca e, por isso, a sensação de não ser preciso cuidar daquilo que é só instantâneo, passa e não volta. Por isso o "apego" ao que está sempre em "desapego" em nossos dias, essa paixão pelo efêmero e passageiro, pelo que não cobra responsabilidades.
Mas o instante não é só isso. E viver o instante é também viver o momento. O momento é diferente de viver o instante passageiro. O momento, também ele efêmero, é pelo menos mais logo e, no limite, constitui um conjunto de instantes vividos. Notem que nesta última frase o verbo vai pretérito. Neste sentido, os instantes vividos são experiências acumuladas que duram no limite dos momentos que se fazem a partir deles - aqui, o instante é mediato. E como mediação entre as coisas idas e por-vir, viver o instante torna-se algo de extrema responsabilidade para os seres que desejam existir em vida.
Por que? Porque a vida presente é o momento do sentido e do significado daquilo que desejamos como matéria para o futuro e confirmação ou refutação da vida passada. No presente condenamos ou absolvemos o passado. No presente "inventamos" o futuro que, uma vez imaginado, pode ser constantemente transformado. Passado e futuro podem ser alterados, o presente não. O presente só pode ser uma coisa: vivido!
O "agora" não é mero acaso, destino por acaso. É o vivido no viver. A somatória das experiências do passado no presente, desejando ou refutando um futuro. E só temos consciência dele porque já passou, virou passado, quer dizer, história.
Viver no presente! O passado inscreve, através dos momentos, os "instantes fundadores" das vontades e expectativas de serzinhos inteligentes que habitam um ponto quase ridículo em relação ao espaço do universo. Como? Através da memória e do esquecimento. Esse casal inseparável das necessidades humanas permite determinar a vida de uma existência em relação às experiências e expectativas do corpo e do espírito no tempo e no espaço. Uma  existência que não significa "vida de uma só pessoa", porque a existência da vida humana pressupõe toda sorte de coletividades em ação: vivemos juntos e misturados - mesmo quando os semelhantes apartam. SOMOS (gosto bastante desta palavra porque mesmo do avesso ela continua dizendo a mesma coisa).
Se viver é uma urgência permanente na condição humana, outros animais vivem, só não o fazem culturalmente, quer dizer, atribuindo finalidade e sentido como juízos de valor para o que vivem, do modo como vivem. Somente as minúsculas criaturinhas alojadas num planeta do sistema solar, num ponto do universo, almejam a vida como existência significativa e com finalidade. Mas viver como? Os internautas resolveriam facilmente essa pergunta: viver bem! Já que existem tantos modos de vida... Mas viver de uma maneira e não de outra é questão de escolha? 
Vejamos se é possível escolher a maneira de viver ou se só podemos escolher sobre a maneira de viver que é determinada por um modelo de pensamento hegemônico, culturalmente definido pelos valores de algumas pessoas ou d um grupo social ou de uma sociedade para toda uma época. Pessoalmente, creio que o viver não seja algo que se faça  sós, consigo, como se só existisse um viver exclusivo e invariavelmente determinado pela percepção/conhecimento/aceitação da ordem das coisas. Precisamos dos corpos, dos fluídos das substâncias como água, calor, vegetais, minerais, ar... enfim. Tendo as condições fisiológicas de um ambiente, é possível viver; se "bem" ou "mal", isso já seria juízo de valor, e ao historiador interessa saber mais sobre como os juízos se tornaram os juízos que são do que formular juízos (não somos algozes do tempo, apesar de alguns se esforçarem nesse sentido). Mas, e existir, como fica a condição de existência? Existimos. Pronto! O viver é que nos chama a tenção, "bem" ou "mal", isso depende do que se pode chamar "cultura"; quer dizer, do modo como o ser histórico (homens e mulheres concretos que vivem e sentem dor) realizam suas ações para superar as necessidades da carne, sob alguma forma de vida humana (prática cultural). Neste ponto existem controvérsias. Cada ser que se crie. Pais e mães que se cuidem, porque os filhos criam a si mesmos. Sem saber como nem porque cada filho vai se criando à medida do tempo em que se formam misturados às substâncias do mundo natural/social. Talvez seja esta uma questão que se volta mais para o sujeito ético do que para o ser histórico. No limite das capacidades desse escrito, há tantas pessoas reunidas na tela de uma vida social virtual, que ficam as perguntas mais latentes do que as respostas: o que significa viver? / viver, significa? / e quem atribui ao significado, ao significante os signos de finalidade?  
Vive-se cada qual à sua maneira? Existe liberdade de escolha? Havendo, são livres as renúncias? Diz o senso comum do dia-a-dia, contrariando uma série de estudos dedicados às questões da existência humana no tempo, que alguns rolam pedras (como Sísifo da mitologia grega), outros levam bicadas no fígado (como Prometeu) ou nos rins, cheios de pedras. Há os que se deparam com as pedras no meio do caminho, como Carlos, o itabirano e há os que as trazem nos bolsos ou que educam as crianças com elas. Particularmente, prefiro os que são feitos de pedra.
O certo é que nem todo mundo concorda ou aceita a maneira de existir dos outros. Daí, conflitos há que não se resolvem a tempo de muitas pessoas poderem viver em vida. Nascem, crescem e morrem em meio a guerras e outros tormentos necessários ao modo de vida de uns e não de outros. Vemos isso todos os dias. Só não damos muita bola por causa do baixo ventre individual, ocupadíssimo em competir, ganhar e ter alguma coisa que lhe permita ser identificado como uma coisa que possui coisas. Com o que nos identificamos depende a nossa vontade. Mas é pessoal a vontade? Do que sentimos vontade interessa  a alguma vontade de outrem? Não não frouxas as vontades dos nossos contemporâneos, do nosso tempo? Não somos constituídos pelos valores do nosso tempo para sentirmos vontades moles, fracas, ausentes? E como é que sentirmos as vontades que sentimos? Se é que se sente vontade nesse tempo...
Dizem-nos (as ações, os livros, os professores e outras mídias), por exemplo, que 1930 instala a "revolução burguesa" no Brasil. Controvérsias esquemáticas à parte, hoje em dia aprendemos (e "ensinamos") que a vontade do brasileiro é ser livre, o que nos remete momentaneamente a um absorvente feminino (sempre livre), para, em seguida, voltarmos ao ponto da questão. Quer dizer, ser um objeto (descartável) que serve para absorver o que o corpo de quem o utiliza expele até o quinto dia útil de cada mês. Não por acaso arrisquei a piadinha infame no texto. Na escola aprendemos sobre o Brasil que foi povoado por europeus, que estes se sentiam oprimidos e que aqui viam a possibilidade de se livrar dos limites impostos pelos seus Estados de origem e pela tradição religiosa europeia, o cristianismo. Que os índios lutaram para manterem-se livres dos colonizadores e que os escravos africanos perderam a liberdade na áfrica para terem de lutar por ela nos quilombos da América. Que liberais sempre quiseram ser livres do modo de vida aristocrático e que aristocráticos sempre se livraram dos entulhos acumulados à porta de suas propriedades, como a moral, o pecado e o mal. Mais recentemente aprendemos a reclamar por liberdade de tudo: ser livre até para não fazer nada da vida e deixá-la levar consigo o que quiser como conta a letra de uma canção popular (de massa) brasileira.
Mas a tal "revolução de 1930" e o sentimento de vontade? Voltemos a eles. O empresário e professor Roberto Simonsen motivou o século 20 brasileiro com a ideia de Nação/Empresa. Para conciliar as vontades gerais, das sombras e das luzes, dos imigrantes e dos nativos, dos litorâneos e dos interioranos, dos empregadores e dos empregados, dos militares e dos civis, dos partidos de direta e dos de esquerda, dos homens e das mulheres, dos cães e dos gatos e dos ratos e baratas dessa terra de papagaios, o empresário via a necessidade de "unificar" a vontade geral. O que quer dizer ASSIMILAÇÃO: criar uma ideia de "ordem e progresso" por meio de ações efetivas de assimilação dos conflitos étnicos e sociais, políticos e econômicos, a partir de um único ente, o Estado (eita abstração danada) para que, a partir dele, as vontades mais distintas convergissem para um único e mesmo interesse: a ordem, o progresso. Para o bem do desenvolvimento industrial, "fabricado" pela jacobinada de Pindorama e para os jacobinos da Bruzundanga, a harmonia social presume a aceitação de todas as diferenças, desde que não se manifestassem. Mas como a conduta (ética) nem sempre é conseguida, o aparelho policial e judiciário foi montado para corrigir o que as escolas e hospitais não dessem conta de "curar". Era a garantia de que fosse confiante e confiável, para o Estado, ser governado por partidários deste ou daquele grupo. Para isto era preciso formar técnicos, gestores da jovem nação Brasil, tanto quanto os funcionários para a construção do pais: os cidadãos brasileiros. Estes, de modo geral, os trabalhadores, cujo as falas foram subtraídas pelo Estado e depois devolvidas sob condições de outorga pública para que falassem o que o governo gostaria de ouvir dizer. A parafernália foi logo sendo erguida ao som de bravatas as mais diversas, brigas, coices e tiros.
Ainda hoje escutamos e falamos de modo que, aparentemente deriva da nossa vontade de ouvir e escutar, mas que está, historicamente, determinado para ser a nossa vontade, para o bem ou para o mal, aceitando-a ou preterindo-a a outra, de ouvir e escutar. No Brasil, internautas, falamos ou aprendemos por imitação a proceder como os papagaios?
Reflito com o cabelo e penso também que quem não leu Carlos Drummond de Andrade não saberá jamais que o poeta de aparência calma, empedrado no calçadão de Copacabana, já foi um jovem irritado com a insistência nacionalista em achar uma essência do brasileiro. Dizia o poeta de Itabira que “Nenhum Brasil existe”. E concluía: “... acaso existirão os brasileiros?” (vide o poema “Hino Nacional”).
Já no documentário "Muito além do cidadão Kane" (1993), de Simon Hartog, o publicitário brasileiro Washington Olivetto afirma a certa altura que a telenovela exerce uma tão grande fascinação sobre os brasileiros que só poderia ser explicada pelo fato de o Brasil às vezes dar a sensação de não ter sido descoberto, mas de ter sido escrito. Terá se referido à fatídica Carta de Pero de Vaz Caminha? Estaria lendo a História de trás para frente e justificando nossas mazelas sociais?
Porque para a lermos às avessas ou "a contrapelo" tal qual ensinava Walter Benjamin, precisamos dizer que é demasiado grande o número dos que não participam da escrita do país ficcional. Já ao país real dão o suor de seus rostos, a força de seus braços, a saúde de seus corpos... Incrível a coincidência de ideias entre o poeta e o publicitário, já que se encontram tão distantes um do outro em termos ideológicos e em relação aos tempos históricos: o que os une, pode-se dizer, é que os dois vivem de criar e de “vender” imagens do brasileiro. Para brasileiros e estrangeiros, criam e vendem "vontades".
O primeiro valia-se das palavras poéticas irônicas para desmentir certo nacionalismo piegas e debatia-se com o governo constitucional de Getúlio Vargas (1934-37). Já o segundo, usa as propagandas veiculadas em outdoors ou pela TV para levar o brasileiro de hoje a consumir o que o poeta ridicularizava na década de 1930. Drummond, através da poesia, desejava desmentir “a realidade brasileira”. W. Olivetto precisa iludir sobre “a realidade brasileira”, pois são muitos os brasileiros que não passam de consumidores de imagens: a imagem do santo na Igreja, a imagem da atriz desejável, a imagem da propaganda enganosa, a imagem falsa de sua vida nas telenovelas.
Colorido este que lembra algo como um contra o outro e deus contra todos, se não me engano de Carlos.

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