quarta-feira, 27 de março de 2013

Ganhei de presente um min-conto de um amigo que trago comigo que nem estilingue que menino leva no bolso...


FIAT LUX

Para Nélio Borges Peres

Eu não sei de quem é a mão gigante...
Ela abre a caixa, a luz brilha. Depois, voltamos à escuridão. Ela leva um de nós. Às vezes é alguém ao lado de cá, outras vezes, é alguém acima de nós... Um dia, eu serei levado pela mão gigante. Ela abrirá a caixa, depois me levará para fora. Então, arrastará minha cabeça até que eu seja consumido pelo meu próprio fogo...   

Arnaldo Reis Pereira (Ribeirão Preto, 26 Out. 12)

sexta-feira, 22 de março de 2013

UM CONTRA O OUTRO E DEUS CONTRA TODOS



Sinto regozijo ao ler e ouvir na rede que todos concordam que é preciso viver o tempo presente: “a gente tem é de viver o momento, e o momento é o agora”. Especialmente porque sou historiador, e principalmente porque me alimento com salário de professor de História, noto que o nobre ofício tem lá sua importância para todos os contatos que pesquei. Conscientes disto ou não, estão todos de acordo com a necessidade de viver cada instante da vida!
Espio os noticiários armado com o pente de Walter Benjamin, com o qual penteio a história a contrapelo. Madrugada passada dormia enquanto o sr. A, o carteiro, atirava em minha casa um bloco de papel concreto. Sobressaltado, levantei da cama e corri ao portão para apanhar a Carta. Era um documento petrificado, semelhante a um monumento. Esfreguei os olhos e notei que aquilo vinha endereçado a qualquer um. Isso não é meu, falei. Mas aí o carteiro já tinha ido embora. Procurei o remetente e notei o nome naquela fatídica Carta: Caminha.
Andei um passo, recuei uns dois ou três. O cão veio. Sentei no chão para entender. Não, de pé eu já sabia. Sentei para me enganar. Não deu. O cão farejou, rosnou. Levantei e voltei para dentro. Apanhei o martelo de bife a fim de despedaçar aquele tijolo. Não deu, faria muito barulho e tenho criança dormindo em casa. É preciso acudir os sonhos dos que sonham.
Reli linha por linha, palavra por palavra a Carta do Descobrimento e tive a sensação de ter em mãos um contrato imobiliário: terra à vista! Já não dava mais prazo. Liguei o computador e nas redes sociais a tribo dos cariocas chamava a acudir a dos maracanãs. Venham ver, venham ver. Venham ver! Vi. Vimos, os que viram. A armada de dom João encarnada de preto e azul marinho celestial pronta a abater os inimigos da Copa que ameaçavam com suas flechas e parangolés de penas a pira dos deuses olímpicos. No dia 22 de março de 2013 o Brasil foi descoberto 500 vezes. Foi como que numa sensação de pertença a todos os tempos vividos. Atolado em meio a lama numa ampulheta.  
O que me levou à força a pensar coisas do tipo que o instante do "agora" (o imediato) é o momento relativo entre os tempos pretérito e futuro (mediato); o constante que não é mais, porque já foi ou poderá vir-a-ser. (O tempo é uma convenção social. Quem busca por ele nalgum lugar dá com os "burros n'água". Não é uma matéria presente na Natureza, mas uma forma de percepção relativa à duração das coisas: uma palavra, no limite, que designa formas de determinação da vida humana em sociedade. O tempo é uma convenção social e está representado em objetos, como o relógio ou o calendário). Da forma apresentada pelo "nosso" senso comum o instante é imediato e dá a sensação de que não dura nunca e, por isso, a sensação de não ser preciso cuidar daquilo que é só instantâneo, passa e não volta. Por isso o "apego" ao que está sempre em "desapego" em nossos dias, essa paixão pelo efêmero e passageiro, pelo que não cobra responsabilidades.
Mas o instante não é só isso. E viver o instante é também viver o momento. O momento é diferente de viver o instante passageiro. O momento, também ele efêmero, é pelo menos mais logo e, no limite, constitui um conjunto de instantes vividos. Notem que nesta última frase o verbo vai pretérito. Neste sentido, os instantes vividos são experiências acumuladas que duram no limite dos momentos que se fazem a partir deles - aqui, o instante é mediato. E como mediação entre as coisas idas e por-vir, viver o instante torna-se algo de extrema responsabilidade para os seres que desejam existir em vida.
Por que? Porque a vida presente é o momento do sentido e do significado daquilo que desejamos como matéria para o futuro e confirmação ou refutação da vida passada. No presente condenamos ou absolvemos o passado. No presente "inventamos" o futuro que, uma vez imaginado, pode ser constantemente transformado. Passado e futuro podem ser alterados, o presente não. O presente só pode ser uma coisa: vivido!
O "agora" não é mero acaso, destino por acaso. É o vivido no viver. A somatória das experiências do passado no presente, desejando ou refutando um futuro. E só temos consciência dele porque já passou, virou passado, quer dizer, história.
Viver no presente! O passado inscreve, através dos momentos, os "instantes fundadores" das vontades e expectativas de serzinhos inteligentes que habitam um ponto quase ridículo em relação ao espaço do universo. Como? Através da memória e do esquecimento. Esse casal inseparável das necessidades humanas permite determinar a vida de uma existência em relação às experiências e expectativas do corpo e do espírito no tempo e no espaço. Uma  existência que não significa "vida de uma só pessoa", porque a existência da vida humana pressupõe toda sorte de coletividades em ação: vivemos juntos e misturados - mesmo quando os semelhantes apartam. SOMOS (gosto bastante desta palavra porque mesmo do avesso ela continua dizendo a mesma coisa).
Se viver é uma urgência permanente na condição humana, outros animais vivem, só não o fazem culturalmente, quer dizer, atribuindo finalidade e sentido como juízos de valor para o que vivem, do modo como vivem. Somente as minúsculas criaturinhas alojadas num planeta do sistema solar, num ponto do universo, almejam a vida como existência significativa e com finalidade. Mas viver como? Os internautas resolveriam facilmente essa pergunta: viver bem! Já que existem tantos modos de vida... Mas viver de uma maneira e não de outra é questão de escolha? 
Vejamos se é possível escolher a maneira de viver ou se só podemos escolher sobre a maneira de viver que é determinada por um modelo de pensamento hegemônico, culturalmente definido pelos valores de algumas pessoas ou d um grupo social ou de uma sociedade para toda uma época. Pessoalmente, creio que o viver não seja algo que se faça  sós, consigo, como se só existisse um viver exclusivo e invariavelmente determinado pela percepção/conhecimento/aceitação da ordem das coisas. Precisamos dos corpos, dos fluídos das substâncias como água, calor, vegetais, minerais, ar... enfim. Tendo as condições fisiológicas de um ambiente, é possível viver; se "bem" ou "mal", isso já seria juízo de valor, e ao historiador interessa saber mais sobre como os juízos se tornaram os juízos que são do que formular juízos (não somos algozes do tempo, apesar de alguns se esforçarem nesse sentido). Mas, e existir, como fica a condição de existência? Existimos. Pronto! O viver é que nos chama a tenção, "bem" ou "mal", isso depende do que se pode chamar "cultura"; quer dizer, do modo como o ser histórico (homens e mulheres concretos que vivem e sentem dor) realizam suas ações para superar as necessidades da carne, sob alguma forma de vida humana (prática cultural). Neste ponto existem controvérsias. Cada ser que se crie. Pais e mães que se cuidem, porque os filhos criam a si mesmos. Sem saber como nem porque cada filho vai se criando à medida do tempo em que se formam misturados às substâncias do mundo natural/social. Talvez seja esta uma questão que se volta mais para o sujeito ético do que para o ser histórico. No limite das capacidades desse escrito, há tantas pessoas reunidas na tela de uma vida social virtual, que ficam as perguntas mais latentes do que as respostas: o que significa viver? / viver, significa? / e quem atribui ao significado, ao significante os signos de finalidade?  
Vive-se cada qual à sua maneira? Existe liberdade de escolha? Havendo, são livres as renúncias? Diz o senso comum do dia-a-dia, contrariando uma série de estudos dedicados às questões da existência humana no tempo, que alguns rolam pedras (como Sísifo da mitologia grega), outros levam bicadas no fígado (como Prometeu) ou nos rins, cheios de pedras. Há os que se deparam com as pedras no meio do caminho, como Carlos, o itabirano e há os que as trazem nos bolsos ou que educam as crianças com elas. Particularmente, prefiro os que são feitos de pedra.
O certo é que nem todo mundo concorda ou aceita a maneira de existir dos outros. Daí, conflitos há que não se resolvem a tempo de muitas pessoas poderem viver em vida. Nascem, crescem e morrem em meio a guerras e outros tormentos necessários ao modo de vida de uns e não de outros. Vemos isso todos os dias. Só não damos muita bola por causa do baixo ventre individual, ocupadíssimo em competir, ganhar e ter alguma coisa que lhe permita ser identificado como uma coisa que possui coisas. Com o que nos identificamos depende a nossa vontade. Mas é pessoal a vontade? Do que sentimos vontade interessa  a alguma vontade de outrem? Não não frouxas as vontades dos nossos contemporâneos, do nosso tempo? Não somos constituídos pelos valores do nosso tempo para sentirmos vontades moles, fracas, ausentes? E como é que sentirmos as vontades que sentimos? Se é que se sente vontade nesse tempo...
Dizem-nos (as ações, os livros, os professores e outras mídias), por exemplo, que 1930 instala a "revolução burguesa" no Brasil. Controvérsias esquemáticas à parte, hoje em dia aprendemos (e "ensinamos") que a vontade do brasileiro é ser livre, o que nos remete momentaneamente a um absorvente feminino (sempre livre), para, em seguida, voltarmos ao ponto da questão. Quer dizer, ser um objeto (descartável) que serve para absorver o que o corpo de quem o utiliza expele até o quinto dia útil de cada mês. Não por acaso arrisquei a piadinha infame no texto. Na escola aprendemos sobre o Brasil que foi povoado por europeus, que estes se sentiam oprimidos e que aqui viam a possibilidade de se livrar dos limites impostos pelos seus Estados de origem e pela tradição religiosa europeia, o cristianismo. Que os índios lutaram para manterem-se livres dos colonizadores e que os escravos africanos perderam a liberdade na áfrica para terem de lutar por ela nos quilombos da América. Que liberais sempre quiseram ser livres do modo de vida aristocrático e que aristocráticos sempre se livraram dos entulhos acumulados à porta de suas propriedades, como a moral, o pecado e o mal. Mais recentemente aprendemos a reclamar por liberdade de tudo: ser livre até para não fazer nada da vida e deixá-la levar consigo o que quiser como conta a letra de uma canção popular (de massa) brasileira.
Mas a tal "revolução de 1930" e o sentimento de vontade? Voltemos a eles. O empresário e professor Roberto Simonsen motivou o século 20 brasileiro com a ideia de Nação/Empresa. Para conciliar as vontades gerais, das sombras e das luzes, dos imigrantes e dos nativos, dos litorâneos e dos interioranos, dos empregadores e dos empregados, dos militares e dos civis, dos partidos de direta e dos de esquerda, dos homens e das mulheres, dos cães e dos gatos e dos ratos e baratas dessa terra de papagaios, o empresário via a necessidade de "unificar" a vontade geral. O que quer dizer ASSIMILAÇÃO: criar uma ideia de "ordem e progresso" por meio de ações efetivas de assimilação dos conflitos étnicos e sociais, políticos e econômicos, a partir de um único ente, o Estado (eita abstração danada) para que, a partir dele, as vontades mais distintas convergissem para um único e mesmo interesse: a ordem, o progresso. Para o bem do desenvolvimento industrial, "fabricado" pela jacobinada de Pindorama e para os jacobinos da Bruzundanga, a harmonia social presume a aceitação de todas as diferenças, desde que não se manifestassem. Mas como a conduta (ética) nem sempre é conseguida, o aparelho policial e judiciário foi montado para corrigir o que as escolas e hospitais não dessem conta de "curar". Era a garantia de que fosse confiante e confiável, para o Estado, ser governado por partidários deste ou daquele grupo. Para isto era preciso formar técnicos, gestores da jovem nação Brasil, tanto quanto os funcionários para a construção do pais: os cidadãos brasileiros. Estes, de modo geral, os trabalhadores, cujo as falas foram subtraídas pelo Estado e depois devolvidas sob condições de outorga pública para que falassem o que o governo gostaria de ouvir dizer. A parafernália foi logo sendo erguida ao som de bravatas as mais diversas, brigas, coices e tiros.
Ainda hoje escutamos e falamos de modo que, aparentemente deriva da nossa vontade de ouvir e escutar, mas que está, historicamente, determinado para ser a nossa vontade, para o bem ou para o mal, aceitando-a ou preterindo-a a outra, de ouvir e escutar. No Brasil, internautas, falamos ou aprendemos por imitação a proceder como os papagaios?
Reflito com o cabelo e penso também que quem não leu Carlos Drummond de Andrade não saberá jamais que o poeta de aparência calma, empedrado no calçadão de Copacabana, já foi um jovem irritado com a insistência nacionalista em achar uma essência do brasileiro. Dizia o poeta de Itabira que “Nenhum Brasil existe”. E concluía: “... acaso existirão os brasileiros?” (vide o poema “Hino Nacional”).
Já no documentário "Muito além do cidadão Kane" (1993), de Simon Hartog, o publicitário brasileiro Washington Olivetto afirma a certa altura que a telenovela exerce uma tão grande fascinação sobre os brasileiros que só poderia ser explicada pelo fato de o Brasil às vezes dar a sensação de não ter sido descoberto, mas de ter sido escrito. Terá se referido à fatídica Carta de Pero de Vaz Caminha? Estaria lendo a História de trás para frente e justificando nossas mazelas sociais?
Porque para a lermos às avessas ou "a contrapelo" tal qual ensinava Walter Benjamin, precisamos dizer que é demasiado grande o número dos que não participam da escrita do país ficcional. Já ao país real dão o suor de seus rostos, a força de seus braços, a saúde de seus corpos... Incrível a coincidência de ideias entre o poeta e o publicitário, já que se encontram tão distantes um do outro em termos ideológicos e em relação aos tempos históricos: o que os une, pode-se dizer, é que os dois vivem de criar e de “vender” imagens do brasileiro. Para brasileiros e estrangeiros, criam e vendem "vontades".
O primeiro valia-se das palavras poéticas irônicas para desmentir certo nacionalismo piegas e debatia-se com o governo constitucional de Getúlio Vargas (1934-37). Já o segundo, usa as propagandas veiculadas em outdoors ou pela TV para levar o brasileiro de hoje a consumir o que o poeta ridicularizava na década de 1930. Drummond, através da poesia, desejava desmentir “a realidade brasileira”. W. Olivetto precisa iludir sobre “a realidade brasileira”, pois são muitos os brasileiros que não passam de consumidores de imagens: a imagem do santo na Igreja, a imagem da atriz desejável, a imagem da propaganda enganosa, a imagem falsa de sua vida nas telenovelas.
Colorido este que lembra algo como um contra o outro e deus contra todos, se não me engano de Carlos.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Há lá educação brasileira




Conto o que segue de um modo improvável. Ouvi dizer. Li. Ajudei a talhar, não sei como. Se eu fosse esperto, do tipo sabichão, metia logo um traje de psicografia nessa história e fechava os olhos ao escrito. Dizia logo que tinha sido obra de espírito maquinando minha mão. Mas eu suei feito cavalo para compor esse negócio. E acho que não iam acreditar em mim. Eu mesmo não acredito. Quem sou eu? Nisso que acabei de escrever e que agora dou para sua leitura existe um conto, palavras a mais palavras amenos, que se pode sustentar, como um combinado entre o que foi dito, escrito e lido. Daqui para adiante, se puder, a leitura pode dar algum sentido. Não porque me tenha faltado azeite pro que conto. Mas é porque é improvável um Zé Mané qualquer escrever nesse país. Confesso que fiquei espantado quando li o que me foi pedido para escrever. Sei lá. O caso é que acredito que valeu a pena guardar um pouco do que escutei e li para escrever. 
O que se diz, aqui, começou pela necessidade de gastar o tempo sem a televisão em casa. Noutro dia, numa dessas viagens a trabalho, fiquei encarregado de cobrir uma festa de peão no interior. Digo, uma festa comemorativa aos 74 anos de uma cidade, dessas que a gente conhece por "capital", mas que no fundo (e na superfície também) é uma cidade, dessas que existem no Brasil. Nas filmagens e gravações de entrevistas conhecemos muita gente. Personalidades locais, gente comum, figuras etc. Foram sete dias de cobertura e fiquei o tempo todo trabalhando. Não para o mesmo patrão, claro, que não sou tolo. Trabalho, de carteira assinada, para o Noticiário das... E quando faço essas viagens aproveito para praticar outras formas de jornalismo, sabe como é, freelancer. Nada de estranho acontecia durante o trabalho. Entre uma entrevista e outra aproveitava para gravar cenas de crianças comendo sobras das mesas, garçons enxotando a molecada para não "enfeiar" o lugar para os clientes poderem chegar, essas coisas que jornalista precisa fazer para ganhar uns trocados a mais e aproveitar promoções dessas coisas que são vendidas por aí. Sabe como é, a gente sente vontade de ter as coisas. 
Acontece que numa entrevista ou outra feita com moleques sujos e catarrentos ou adultos adulterados a gente conhece umas celebridades fora do script. Foi o caso, por exemplo, de um tal Mão Pelada, ladrão profissional de quem um dia (ainda) escrevo um conto. Neste, falo de um outro que conheci. Não era qualquer um, apesar da aparência. Digo, minto. Era qualquer um sim. Perguntei o nome dele e me disse  "Mané", ao que uma molecada ao lado ria, dizendo em coro, "é mentira, o nome dele é Mané Fedebosta". Era uma algazarra tão grande com aquele nome que o homem ao invés de esbravejar com os moleques me fez um sinal para sairmos dali. Fui. Chegamos num canto entre as mesas e barracas do parque de exposições começamos a conversar. Amenidades. Confesso que imaginei, diante da proximidade com aquele cara, que o cheiro de estrume que enfesta essas festas estava impregnado nele. Não sei. não cheirei de perto pra saber. Conversamos longamente. Dispensei meu iluminador e assistente dizendo a ele que naquele dia, acho que foi no quarto dia da festa, ele podia ir curtir o curral e os shows na arena do tatersal de elite. Paguei pinga e cerveja com espetinho para aquele homem de nome estranho e engraçado que me dispensou o trabalho repetido e me concentrei para ouvi-lo. De tudo o que ele me disse, creio, o importante é fazer notar que de um modo ou de outro, pondo pra fora ou pondo pra dentro, todo tipo de merda pode ser fertilizante.
Esperei ouvir banalidades. Coisas do tipo "bunda", "boca", "peito", "prexeca" e outras tantas que se ouve quando se frequenta lugares públicos em nosso país. Mas o homem me surpreendeu dizendo que tentava ser escritor. Que queria escrever um livro. Na hora pensei que era a bebida, mas achei engraçado imaginar um livro cujo autor assinasse Fedebosta. Claro que se recebesse um salário decente não ficaria ali, à cata de uma matéria que me pudesse valer uns reais por fora, ao estilo caixa dois. Confesso que mais do que o dinheiro isso me valeu uma escola. Quis saber sobre o seu nome e ele sapecou uma autobiografia que julguei digna de nota. 
Nome: Mané Fedebosta. Profissão: faztudo – em casa, no terreiro, cultiva um canteiro com minhocas do qual faz uso para vender humos para jardim. A alcunha de “bosteiro” o acompanha desde a infância, quando começou a criar minhocas num cercado improvisado próximo ao chiqueiro na propriedade dos pais. Cresceu entre os anos 70 e 80 na região do chamado Médio Norte goiano. Na infância dele eram muitos os adultos que pediam aos filhos para irem pegar minhocas para fazerem isca antes da pescaria do final de semana ou de algum fim de tarde à toa. Diziam aos meninos que “terra onde tem minhoca é terra boa!” E as crianças cresciam sabendo que minhoca produz húmus, que é fertilizante natural. Enquanto a criançada corria a encher latas de extrato de tomate ou de óleo de cozinha com minhocas sujas de terra, o pequeno Manoel Botero, filho de agricultores chegados do Triângulo Mineiro, entendeu que melhor do que tirar as minhocas da terra era juntá-las para ver no que é que davam. Deu, de cara, num apelido. Os meninos, que corriam e chutavam cabaça com ele no terreiro da Venda, deram de chama-lo de “bosteiro”, por causa da ideia que eles tinham sobre a prática do coleguinha. Para adiante, cresceram os meninos e Manoel herdou das terras do pai um pedaço de chão no qual morou e criou gado de leite e galinha para consumo da família, enquanto trabalhava para os outros como faz de tudo nas fazendas do norte de Goiás. O conhecido Fedebosta veio das conversas das patroas que iam visitar a esposa e ouviam dela pequenas queixas sem importância, sobre o cheiro do marido no fim do dia: “uai, gente, cês recramam dos marido dóceis atoa demais, ceis num sabe o que é que é tê todo dia um homi que chega em casa todo dia fedeno bosta de currar”. Quimera sem importância, mas que da língua das comadres passaram aos ouvidos dos compadres que, na venda, entre uma caçapa ou outra, rendiam risos e piadas uns com os outros contando que “o cumpadi Mané tem minhoca na cabeça, tanto que até a mulé dele crama que quando ele soa insima dela o suó febosta”.     

Em seguida me disse que "foi pruisso que eu pensei o pensamento que penso. Pensei duro. Cheguei de suar a ideia de pensá. Fui correndo pra frente do espeio pra ver como é que eu ficava quando pensava. Não deu puisquê na frente deleu já num pensava. Parecia queu tava erinventando. Voltei, peguei no lápis e pensei que pensar não adianta, tem é quescrever. Daí eu pensei de novo que escrevê também não leva a nada se numtiver alguém pra lê. Daí eu mesqueci d'queu mesmo leio e quando vi jatava escreveno. Gostei. Daí eu escrevi o que se pode ler e passei pra um amigo que é professor. Ele levou pra casa e depois, no outro dia, disse preu contá como escrevi prele vê se podia publicar num tal de blog. 'Não sei se vai dar certo', ele falou. Mas ele tumém falô que ia corrigir uma coisinha aqui outra ali, e tentá deixá do meu jeito o mais que ele dessa conta e pudesse deixar".

Ele me mostrou um monte de papel tirado do bolso lateral da calça. Maneou a cabeça e se bateu na perna com o chumaço de papel enrolado. disse que não queria mais saber e me entregou aquela resma manuscrita cheia de palavras e riscos. Comentou que não era mais aquilo. Que o professor tinha mudado muito, mudado tudo! Que não sabia mais se aquele era ele ou se tinha virado outro. Fiquei encabulado. Sem saber o que fazer, fiquei parado, olhando e ouvindo. Até que ele me narrou um sermão por eu não ter filmado nossa conversa e dispensado meu assistente. Disse que era tudo uma merda, atirou os papeis em mim e saiu bebendo. 

O leitor já deve ter notado que não houve a matéria para a qual eu contava ganhar uma grana. Isso eu ganhei com as entrevistas que fiz com um moleque de rua que filmei engraxado botinas na porta da boite que foi instalada no parque, perto do curral. E a quem eu tive de pagar um cachorro quente com refrigerante para me dizer o que eu precisava perguntar a fim de dar um ar de drama ao seu trabalho e condição. Com isso faturei três mil reais de uma produtora que documenta a perda da infância para o trabalho e que se mantém através de verbas do governo que são repassadas a uma ONG internacional, com sede em Madrid. Já os escritos daquele cara. Bom, para não desperdiçá-los, de todo, eu os reproduzo aqui, tal qual os havia atirado em mim, digitados conforme o que ele fez aos olhos da correção do professor que ele disse tê-lo ajudado a se encontrar. Por quê? Bem, isso é uma postura tão íntima. Mas direi. Reproduzo-os porque os li e de certo modo me identifiquei com as pretensões literárias daquele caboclo. Sabem como é, sou jornalista, e acho que as pretensões daquele cara não podiam ficar de vez desperdiçadas. Vai que...  

Não colocarei aspas, porque daqui para diante o leitor sabe que não serei apenas eu, mas ele(s)/nós, até o final. Ou, se preferir, o leitor poderá acreditar que é tudo obra minha e, quem sabe... me divulgar...

...uma senhora ria à toa na banca de pastel da feira de sábado: “Minha menina vai ser doutora em Enfermagem. Vai mandar nos enfermeiros dum hospital”. Disse isso quando o óleo da fritura escorria do pastel até alcançar a saia dela. Nem via. Pediu mais um de queijo com carne, pagou e saí comendo.
Será que na faculdade aprende o quê? Sei que a vida ensina. Quer dizer... Ora bolas, quem é que importa com a vida hoje em dia? Nem os padres. Na televisão passou o caso de um padre doido que sumiu do mapa voando nuns balões de festa. Gente maluca! Conheço gente que sofre só de pensar. Tive um tio que era assim: adorava novela porque exige menos esforço da mente, é só olhar. E tem programa que teoriza pra quem não olha direito. Ele dizia que bom mesmo é viver com as idéias prontas.
Sempre me disseram pra entrar na faculdade. Um dia eu fui, mas lá não tinha emprego. Tem diploma. E um estágio remunerado que me falaram que é pra quem tira nota boa. Não era pra mim. Pensei no diploma, o que é que eu faria com um troço desses depois? Usá-lo, de certo. Podia fazer alguma coisa com ele. Um adorno de parede. Ideia besta. Prestar concurso pra um cargo melhor. Dizem que um diploma muda a vida de muita gente. Será? Deixaria de ser o que sou? O que é que eu sou? Nem sei o que eu fui ontem, vou lá saber o que eu sou hoje! Mas escrevendo chego a pensar que acho que penso que preciso entrar no mundo das letras, saber de gramática. Nem que seja para ocupar um cargo. Quem sabe o de “fulano do RH” ou o de “beltrano disso e daquilo”.
Ter diploma. É preciso ter cargo, salário. É, o salário é que é bom. A não ser que seja diploma de respeito, assim, com anel e tudo. Disseram que na advocacia eles botam duas letras antes do nome de batismo que dão moral. Imagine só o que duas letras podem fazer de moral! Queria era o caminho mais curto. Parece que os enfermeiros conseguiram a graça que antes era só dos médicos e dos advogados. Agora já podem ser rebatizados no diploma. Acho que era isso que a senhora falava, distraída com boca cheia de pastel. Mas ser enfermeiro, mexer com sangue e limpar bosta de doente. Ah, não, eu só quero é ganhar dinheiro!
O importante pra ter diploma eu já tenho. Tirei o segundo grau. Posso entrar na faculdade. Mas qual? E pra fazer o quê? Só sei trabalhar. Na verdade mesmo eu nunca estudei de verdade.
No ginásio, com a Clementina, aprendi a fazer amor. Ela era filha do biscoiteiro da venda. Muito atenciosa com os colegas. Quando espremo os miolos e tento lembrar as aulas, só a imagem da Clementina me vem na mente... Clementina...
Da escola primária não tenho muitas lembranças. Ouvi meus pais dizerem que eu pulei etapa. Lembro-me é de pular muro. Sei lá. Ao menos era bom brincar no pátio. Tinha colega que levava brinquedo de casa e que depois emprestava pra gente, com medo de apanhar no final da aula.
As quatro primeiras séries eu fiz em oito anos. Ia pra escola com o uniforme que a minha mãe conseguiu ganhar da mãe d’outro aluno mais velho. No começo, a camiseta parecia uma camisola. Mas minha mãe disse que com o tempo ela se ajeitava. E ajeitou. Serviu só até eu completar a segunda série. Da terceira em diante ia pra escola só pra namorar, lanchar e jogar bola. Era legal dar olé nos meninos menores. Era respeitado. E até a quarta série ninguém brigava depois da aula sem antes pedir conselhos ou proteção pra mim. Essas coisas eu aprendi. Mas depois tive de sair da escola.
Foi nessa época que eu conheci a molecada no ginásio. E logo de cara me apareceu a Clementina. Acho que ela explica alguma coisa sobre eu não querer continuar a repetir os anos. Era estudiosa. Às vezes a gente inventava uns grupos de estudo e, como ela era dedicada pra ensinar, a gente acabava aprendendo alguma coisa antes das provas. Aprendi muito com ela nos quatro anos do ginásio. Aprendi, porque passei do ginásio. Lembro que todo final de ano, antes de entrar de férias, a Clementina me ajudava a estudar pras recuperações. Lá em casa já diziam que aquilo não serviria pra nada. 
De tanto mostrarem isso para mim, acabei convencido de que tava mesmo era apaixonado pela Clementina. Não era pelos estudos. Hoje em dia só me lembro dela: Clementina...
Depois, tive de parar de estudar. Não teve jeito. O mundo do trabalho é assim. Mais hora menos ora ele te arranca das brincadeiras e te mete uma ferramenta nas mãos. Também fui levado na marra pra dentro do Quartel. Os sargentos disseram que eu era mais um mocorongo que ia passar sem deixar rastro. “O passado” falavam, “só é digno para os heróis da nação”. Como sempre fui meio covarde na presença de autoridades masculinas vestidas de verde oliva acabei abraçando a disciplina. Acho que aquele ano foi decisivo para mim. Eu me dediquei nos exercícios e na obediência cega ao fuzil. Afinal, aquilo é tão ruim que nem os mocorongos arriscam repetir a dose.
Nunca mais ouvi falar da Clementina. Mas ainda me lembro dela. Sei lá. Conheci uns sujeitos que me arrumaram emprego de servente de pedreiro, e meti a cara na construção civil. Andava sujo nas ruas da cidade e quase ninguém me via passar. Viam sempre um traste; servente de pedreiro andando. Quando eu entrava num bar e pedia cerveja, todo mundo em volta olhava para mim como que se eles estivessem diante de um bêbado: “Oh, pinguço!”, era assim que me tratavam. Não. Minto. É assim até hoje. Não tanto, mas é. E eu nem queria parecer alguma coisa. Eu queria parecer comigo, com o que eu era. Mais eu era? O quê que eu era se eu nem sei se eu fui? Rezava. Hoje não rezo mais. Rezava e pedia a Deus pra me ajudar. Depois ficava com vergonha de Deus e pedia pra ele ajudar todo mundo. Sempre achei que parecer humilde podia dar alguma coisa. Emprego ou trabalho? Sei lá, vai. Seja o que for sempre pelejei pra me ensinar que é educado ser obediente. E feliz. Nunca furtei nada de ninguém que não merecesse ser furtado. Fui obediente aos que me podiam castigar duramente. E sempre distribuo sorrisos.
Quando voltei pra escola, já adulto, disseram que eu podia tirar o diploma de Ensino Médio em um ano. Achei graça, porque em um ano eu poderia dar conta de três. Só me convenci disso quando o professor de História disse que um presidente já tinha dado conta de fazer o país crescer cinqüenta anos em cinco. Acho que era o tal de Erlemeyer neyermeier, sei lá. O cara que fez Brasília. Daí eu empolguei, só não acreditei muito. Enchi os ouvidos de esperança e achei razoável que a escola formasse alunos mais velhos num modelo três em um.
No final do curso a diretora levou um médico para falar de exames na turma. Parece que era importante saber se a gente tinha doença e no que é que a gente tinha aptidão. Lembro até hoje daquele senhor: vestido de branco, cabeça rala e testa brilhosa. Era médico, mas também fazia a vez de psicólogo, ou orientador vocacional, vá saber o que era aquilo. Nem liguei, porque não tinha injeção. Também nem sabia o quê que era essa tal de aptidão. O senhor de branco com a cabeça rala e brilhosa falou comigo que a saúde pública precisava de homens como eu. Parecia um mago falando, um pai de santo, vai saber. O certo é que ele conseguia adivinhar o que a gente pensava. Queria tanto que minha mãe tivesse suportado a epidemia de dengue. Talvez essa notícia a animasse mais do que ver o filho trabalhando de voluntário da pátria, camuflado de pé de couve com caruncho dando a cara pra mosquito no meio do mato ou na construção civil.
Orgulho muito de ter sido apoiado por um doutor da mente a seguir carreira na saúde pública. Consegui ser aprovado num concurso para Oficial de Limpeza do Município e virei Gari. Aliás, é um cargo bastante digno, segundo a opinião do meu conselheiro intelectual. Mas não deu certo, não. O cargo era até bom, funcionário público, sabe como é. Mas o trabalho que dava não fazia o esforço valer a pena, não. Preferi ser servente de pedreiro porque não tinha de usar uniforme.
Acredito que é uma pena não existir mais o MOBRAL. Meu pai estudou lá, meus tios também. Foram levados pelo meu avô, primeiro da família a se destacar naquela casa de instrução pública. Quisera eu conseguir ser a terceira geração da família a brilhar num instituto de educação tão nobre como aquele. Poder arrumar um emprego depois. Emprego, porque trabalho eu já tenho demais. Me falta é cargo, que nem o desse pessoal que meche com dinheiro dos outros.
Afinal de contas, o que é que eu quero de verdade? Que indecisão! Meu avô saiu direto daquela escola para ir trabalhar com um deputado que era agricultor. Acho que era. Trabalhava com laranja. Eu era pequeno, mas lembro do meu avô que passava meses dentro de casa esperando entrar a época de safra, e só saía de quando em quando pra ir receber um dinheiro que ele falava que vinha da laranja.
Depois da morte do meu avô o meu pai e os meus tios (os irmãos dele) começaram a trabalhar para aquele velho. Mas não deu muito certo, não. Agora eu me lembro da minha mãe reclamar do preço das laranjas, era pouco e quase não dava pras despesas da casa. Chamava meu pai de malandro. Acho que foi por isso que o casamento deles terminou. Ela arranjou um emprego de garçonete à noite. Coitada, chegava lá em casa todo dia de manhã estropiada, reclamando da freguesia e das gorjetas dos bebuns. Mas enfim, foi assim que foi. Passou.
Hoje em dia sou eu quem tenta galgar uma posição social. Ter alguma coisa pra poder ser alguém. Diploma Superior. Pronto! Entrar no mercado. É isso o que a televisão me diz quando eu assisto à televisão. Nas ruas têm cartazes que chego a duvidar se existe papel suficiente no mundo pra imprimir tanto diploma. Será possível? Sei escrever meu nome e tenho disposição para frequentar aulas. Não todas, mas a maioria eu acho que agüento. Depois, o que vale mesmo é ser efetivo, ter presença, deixar que me vejam. Preciso fazer valer o esforço, porque não deve ser mole pra um adulto ficar sentado escutando o outro falar. Nem criança agüenta! Basta não abusar das faltas. Talvez consiga algum diploma de curso superior em até dois anos. O professor põe pimenta, mas sei lá.
Parece que não existe mais nada pra aprender! Essa me parece ser a única vantagem de ter cursado o primário oito anos. Porque tanto no ginásio quanto no supletivo, pude ver que o que se ensina é o mesmo: desde a primeira até a quarta série o negócio é escrever o nome, desenhar árvore genealógica, contar números e classes de seres vivos. Tá certo, uns professores tentam sofisticar os conteúdos, disfarçando para não parecerem repetitivos. Alguns desenham linhas e metem números nelas pra gente poder contar, ou pra mais ou pra menos. Para quê serve tudo isso? Num sei, só acho que é pra passar no tal do vestibular. Aí, na faculdade, é provável que a gente aprenda alguma coisa de verdade daquilo que é mistério.
Já vi professor usar microfone para falar com o pessoal na sala de aula. Parecia ser importante, andando de um lado pra outro, gesticulando quinem pastor pregando pra um montão de gente num galpão. Ele até parecia querer falar alguma coisa. Contar alguma história. Tinha de ser conciliador entre o desejo da gente de aprender alguma coisa com o da escola de lucrar o máximo com o mínimo de gente pra trabalhar. Escola paga sabe como é... É isso aí. Uma bêbada que fala pelos cotovelos.
Educar pode ser trabalho de obreiro, já pensei isso uma vez. A classe pode até aumentar o contingente que o professor continua sendo só um. Mas eu, ser professor, sai fora! Ter um mestre de obras que vem de quando em quando olhar a construção do material é uma coisa. Ficar aguentando um monte de gente que nem eu, e tudo duma vez, nem de dó! Erguer conhecimento junto da gente do povo é o mesmo que erguer casa popular. É um troço afoito, rápido. Hoje em dia é tudo em bloco de encaixar. Custo baixo, cômodo estreito e depois que fica pronta até parece que vai cair. Depois, quem quiser que aumente sem limite. É por conta própria. O vestibular escolhe quem assina o serviço que a gente faz.
Mesmo assim acho as casas populares mais reais que a educação. Creio que se as pessoas pudessem escolher mais também errariam mais e por isso escolheriam melhor. Muitas pessoas gostam de dizer que são coletivas, que gostam de estar junto. Que nada. Dá pena ver as pessoas que só gostam disso quando são elas que estão ditando as coisas do relacionamento. Uma objeção que você faz e pronto, já passam a achar defeitos. Quem não se reduz ao que o outro quer se lasca, sai da relação como o chato, o resmungão que é sempre do contra. Pra mim, hoje dia acho que quem segue alguém nada segue, porque também nada procura.
Mão de obra. É o que espero das escolas! Que elas criem mão de obra qualificada! Essa palavra é boa. O pensamento também. Aprendo isso no supletivo, nas aulas de Geografia. Nunca pensei tantas possibilidades para ela como agora. A Geografia. Será mais um suspensório do que um acessório na minha vida. Educar segura as calças. A Geografia ajuda a dar rumo, direção. Mas na escola a gente não desnuda. Só veste.
Qualificado. Isso é qualificado pra vida? No exercício da minha existência conjugo o verbo liberdade e vejo que ela só existe para poucos, que são livres pra fazer nada, ficar de papo para o ar dando uma de Pilatos.
Uma coisa eu aprendi no tempo da caserna, o controle do corpo. Na escola habilitam a gente para exercer alguma atividade produtiva, obedecer. E isso é bom porque parece. Não quero dizer que o trabalhador é permanente na obediência. Quero só dizer que o querer do meu querer é o que nem sei o quê que me dizem que eu preciso querer. Queria era poder deixar registrado que um dia eu existi e que os versos da educação brasileira me inspiraram até aqui. Sei lá. Um dia desses ouvi um cara cantar uma música sobre um tal Chapoliom, Chatobriom, um troço assim. Faltava um monte de dente na boca dele. Também faltam na minha boca uns dentes pra dizer um monte de palavras. Escrevo. Ponho no papel quase do jeito que vem na boca. Acho que foi um tal de Andrade, não sei das quantas Andrade que pensa que isso é mania de criancice: dada pra cá, dada pra lá. Do jeito que vem vai. Assim, oh! Ai eu escrevo, acho que escrevi. Sei lá. Se alguém além de mim conseguir ler é porque eu escrevi. Será?

terça-feira, 19 de março de 2013

O BRAÇO


- Até que é possível descobrir o curso regular das coisas.
- Mas isso é metafísica Manuel...
- O quê?!
- Não existe regularidade nas coisas humanas. Digo, a espécie do homem e sua condição cultural. A cultura, o que diz respeito aos modos de ser da espécie do homem é relativa, histórica, sabe como é. Os modos de ser humano tornam o curso da história irregular. Acho que isso é assim. Parece regular, mas do ponto de vista da natureza: clima, relevo, vegetação, hidrografia, essas coisas. Afinal de contas, somos inconstantes, não somos? As abelhas fazem mel do mesmo modo desde a antiguidade até hoje. Mas nós não. Plantamos, colhemos, distribuímos e comemos de modos bastante diversificados ao longo da história. Enquanto ser histórico, o indivíduo real e concreto, que sente dor e vacila, que vocifera e pragueja, cai ao chão e dele se levanta para pular, tropeçar e cair de novo. Somos seres inconstantes nessa constância natural da vida. Mas isso é só do ponto de vista da natureza. Não sei se vale para considerar a história, apesar de valer para a biologia, a geografia...
- É meu amigo, Carlos. Somos! Mas olha que esse verbo no plural é constante, digo, até quando as letras são colocadas do fim para o começo. Brincadeira. Mas isso que você diz é um juízo, né.
- É, e eu acredito que o ser humano pode possuir uma vontade livre. E acho que hoje em dia é da vontade livre do ser humano se notar como inconstante. Pelo menos é o que tá na moda.
- Vontade livre, né, sei. Você diz ser determinado por uma vontade pessoal. Isso não é moda? Algo que passa e que permanece ao mesmo tempo? Você crê numa outra força que não seja a da vontade própria de cada um? E d onde você acha que ela vem? É capaz de crer que a natureza pode determinar uma pessoa?
- É. Pelo clima...
- Uai. Se fosse assim não haveria sentido em trabalhar no Brasil do mesmo modo que se trabalha  nos EUA ou na Europa. Já te mostrei que qualquer conceito que é feito pra atribuir sentido e julgar as ações deve ser encarado pelo olhar histórico da relatividade. Mas você pode pensar diferente. Isso mostra que na espécie há inconstância, não pensamos ou julgamos as coisas do mesmo modo o tempo inteiro. A não ser quando as observadas são feitas a partir das particularidades, você e eu, por exemplo. Você se lembra do Nelson Levy?
- Estudei pouco. E você?
- Comecei. Pois então. Acho que o que ele diz é mais ou menos que a liberdade da vontade das ações humanas, por exemplo, é relativa ao valor que cada época e lugar atribui ao sentido ou valor dessa palavra, digo, dessa prática, sabe, ser livre, agir livremente. Acho que somos condicionados pela natureza, pela natureza da nossa espécie. A cultura influencia, mas para encontrar regularidade nas coisas humanas, quer dizer, na própria cultura, como formas de ser dos homens e mulheres no tempo e no espaço, acho melhor considerar o ponto de vista da natureza. 
- Isso é o mesmo que dizer que as vontades pessoais são determinadas por leis? Digo, por leis naturais universais imutáveis?
- Imutáveis?! Não, porque a própria natureza muda. Muda o ambiente, afinal de contas, os rios secam e as terras áridas alagam.
- Mas isso são acidentes. A humanidade do homem sob os auspícios do capitalismo também não é um acidente? Como todo acontecimento natural, Carlos.
- Mas é que penso a espécie dos homens como sujeitos individuais, que agem de modo confuso e irregular.
- Como é isso?
- O Eu, o self de cada um de nós que...
- Self? Isso é meio que uma ilusão da psicologia. Sei lá, mania que burguês tem de colocar as coisas encaixadas como se pudessem existir seres humanos individuais. Onde já se viu isso, julgar uma espécie inteira através de um único exemplar!
- Mas, e as biografias...
- Biografia é coisa séria. Não é diz-que-diz-que de publicidade e nem propaganda. Tem quem diga que é coisa de aristocrata que os burgueses acharam lucrativo copiar. Mas a gente, a gente comum, esse nós, está vendo, a gente existe é no plural. Não somos seres individuais, somos seres coletivos. Não consigo pensar a espécie do homem como átomo. Se fosse a cultura sim, a humanidade, né. Tem tanta forma de ser humano na espécie do homem. A gente anda em bando, de mãos dadas, se esbarrando ou se acotovelando nas ruas, e mesmo sem a gente se encontrar a gente vive junto, querendo ser feliz, ter uma vida boa.
- Mas existe uma vida boa, não? Uma vida que se vive em paz...
- Como? Só se for de falar, quer dizer, de retórica. Não se vive em paz. Se vive ou não se vive. De qualquer modo é luta todo dia, sabe o ditado, matar um leão por dia...
- Sei.
- Então. E se quiser pode incluir a ele desviar de umas dez antas a cada leão...
- Está certo Manuel. Mas fora de brincadeira, você não acredita numa vida boa?
- Numa só, não. Creio que tem um monte de vidas boas para serem vividas ao longo de uma existência. Daí você pode pegar as biografias e considerar quantas vidas boas uma pessoa já pôde viver enquanto existiu. Ou então, fazer o que alguns historiadores já fizeram e hoje em dia não fazem mais, pelo menos não fazem muito, que é considerar a existência de um modo de ser humano no tempo e verificar quantas vidas boas já não foram pensadas por ele, para ele.
- Mas ai você está falando na espécie...
- É, e não é. Olha, Carlos, a espécie é uma, mas o modo de vida dela é variado. Se você considerar apenas o modo de vida animal, vai ver que, na natureza, a gente se equivale a outros animais.
- Mas somos racionais...
- Então, como ia dizendo. É e não é. A natureza deu a estas flores aqui do jardim espinhos e àquele gato ali garras afiadas e uma coluna vertebral maleável. Quer dizer, cada criatura, cada ser vivo, é dotado de mecanismos que lhes permitem ser o que eles são independente do juízo de valor que possa ser feito. A espécie do homem, como espécie animal, dentre outras, possui a capacidade da razão. Mas não diria que possui a razão. Tem horas que a gente age sem ela, como se fôssemos só animais mesmo.
- E isso é o que nos diferencia das outras espécies...
- E de nós mesmos. Porque pela razão a espécie desenvolve capacidades que lhes são necessárias para sobreviver ao mundo natural, incluindo aí a própria espécie do homem.
- Mas... E os indivíduos seletos, os espécimes raros da nossa espécie. Eles não valem individualmente?
- Nossa, falando assim você parece um jardineiro que conheço. Valem... um ponto, um conto, uma nota. Que nem dessas aqui, de dinheiro. Você se lembra da nota de “um barão”?
- Sei...
- Então, como ia dizendo: o que é irregular está no que se toma individualmente, mas a regularidade pode ser percebida no conjunto da espécie. E te digo mais, essa regularidade pode ser tomada num sentido de desenvolvimento progressivo, lento, sabe como é? De repente há umas escalas aceleradas, como na música, mas só pra dar um tom de lentidão. Já ouviu Marco Antônio Araújo, o violonista? Então, isso é semelhante à música, o tal do rock progressivo. Outra coisa é jazz, essas quebradas inconstantes, feitas de improviso, que fazem lembrar as imagens da vida da gente no dia-a-dia cosmopolita.
- Mas então existe uma disposição original, um começo do...
- Creio que não, ou melhor, sim. É. Já notou que em todas as épocas e lugares as pessoas sentem vontade de viver? Acho que a vontade de viver (bem ou mal não interessa agora) é intrínseca ao próprio homem como espécie. Igual criança que respira pela primeira vez fora do útero materno. Sem saber como nem porque, respira, sente vontade, mesmo sem saber, muito menos o que sente. Esse saber se arranja depois, e mesmo sem saber como funciona o sistema respiratório a gente respira.
- Sim, os indivíduos vivem de modos tão diferentes. Por isso acho que é tudo fragmentado, quebrado... e que essa coisa de totalidade, universalidade não passa de metafísica de homem que bebe vinho e usa vestido.
- Como? Acho que você entendeu a metafísica num canil. E você queria o quê, que as épocas e as pessoas fossem iguais? Já não basta essa biologia usada para entreter ou adestrar candidatos a uma vaga no vestibular?
- Então a espécie humana age historicamente como se tivesse um “plano superior” traçado para ela?
- Rapaz, senta direito ai. Deixa eu te contar uma história. Posso? Tem tempo para ouvir?
- Vamos lá, acho que sim.
- Jovens! Antes, vou tentar explicar mais uma vez. A vontade livre que você pensa praticar é uma invenção do gênio humano, um valor, um juízo criado para atribuir sentido ao mundo vivido. O que não invalida supor que o mundo vivido não tenha um sentido, quem sabe, inatingível por nós. Nós somos parte desse mundo caótico e sem sentido, tudo bem, e vive-lo não significa que o vivemos por inteiro. Tampouco que o podemos saber por inteiro. Nossa espécie não tem nenhum propósito racional próprio. O que temos de próprio é o que Kant chamou de “vontade determinada”, não por nós, mas pela nossa terrível condição de pertencermos à natureza.
- Terrível?! Mas se nós podemos transformá-la...
- Daí ela nos transforma...
- Ah, mas a filosofia analítica dá conta de que é pela linguagem que nós atribuímos sentido ao mundo!
- E o mundo nos significa. Sei. Eu falava de metafísica, não de materialismo ou de dialética. Considere o seguinte, que todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a se desenvolver um dia. Isso está presente em todos os animais, e pode ser visto pela observação externa e pela observação interna ou anatômica. Um órgão que não deva ser usado é uma contradição.
- Ah, Manuel, mas isso é doutrina teleológica...
- Psiu! Quieto porque o que tenho para contar é explicativo. Se abrirmos mão desse princípio kantiano de que as disposições naturais são reguladas por leis universais não teremos uma natureza regulada por leis, mas um jogo sem finalidade da natureza, uma indeterminação desoladora tomaria conta do fio condutor da razão.
- E a razão tem fio?
- Quieto. Deixe o ceticismo pra o final. Como partes desgarradas desse mundo, como individualidades, nossas disposições naturais que estão voltadas para o uso da razão não podem se desenvolver. O que quer dizer que é apenas como espécie que podemos desenvolver nossas disposições naturais completamente e conforme um fim. Como individualidades, somos absurdos, caóticos, esquizofrênicos, paranoicos.
- Será que é por isso que os livros do Freud continuam dando certo, mais do que os de Marx e Nietzsche?
- (...)
- Desculpe. Continue, por favor.
- O que tentamos realizar sozinhos, em meio a nossa condição de igualdade natural e diversidade cultural é, no fundo, uma cópia dos propósitos da natureza. Mas a natureza nos deu a razão, e às vacas, não. E por quê? Porque a natureza tem planos para nós, planos que ultrapassam a ordenação mecânica dela própria. Isso está em Kant – espero que esteja. A natureza pretende que nos realizemos de um modo diferente da existência puramente animal. Se nossa espécie é animal, por outro lado ela também é capaz de atingir a razão, o que nos torna culturais, seres de conhecimento, e não apenas de instintos. Nossa felicidade, nossos ideais de “vida boa” não podem ser atingidos somente pelos instintos. Precisamos nos realizar por nós mesmos, livres do instinto animal, por meio da razão. Olha só aqueles trabalhadores. Observe como se felicitam simplesmente por se comportarem como animais. Gritam, esperneiam, batem uns nos outros, reclamam direitos, fogem dos deveres e depois que bebem dois ou três copos de cerveja cantam e acham que a vida que levam é boa. E os patrões, sangue sugas, se regozijam de serem felizes e terem uma “vida boa” por agirem como vermes, quer dizer, numa escala abaixo a dos animais. E me parece que a natureza não se importa se vivemos felizes ou não, bem ou mal. Ao contrário, ela parece nos ter traçado a finalidade de vivermos de um modo a nos tornarmos dignos desse viver, pela nossa conduta.
- Você quer dizer a ética?
- É. Só assim, com o trabalho da razão, seremos dignos de vida e de bem-estar.
- E a moral, Manuel?
- Isso é uma necessidade. Sabendo que a conduta pode ser desviada por algum instinto (sensação animal), a gente inventa isso para tentar nos controlar, quer dizer, para nos fazer lembrar que existe uma conduta, e que no final das contas, é a conduta que vale.
- Parece enigmático.
- Mas é algo que nos permite traçar um plano para nossa espécie, que procede sem plano nenhum.
Agora recosta aí, acende um cigarro. Dá um pra mim. Há um tempo pude assistir um acontecimento desses que a gente preferiria estar longe para não ver. Do tipo, poder fumar sem ter de olhar essas fotografias horrorosas no maço de cigarros. O que vi? Você dirá que é um absurdo. Que invento. Não importa. O importante é você calar para me ouvir, depois, se quiser, comente do modo que puder.
Dias atrás vi um braço. Sim. Na verdade não vi, percebi um braço. O braço escorava um corpo debruçado no parapeito de uma janela. Havia uma casa. E as portas da casa e de dentro da casa estavam fechadas. Um absurdo se apossou dos nervos daquele braço. Eu o percebia tremer. Não era frio, nem medo. O corpo parecia reto, frio, mas o braço, não dois, mas um braço apenas tremia, parecendo quente e agitado. Parado, meu olhar admirava aquela inquietação latejando como se a aorta fosse rebentar a qualquer instante. Permaneci ali com uma sensação calcinante de consciência do tempo que passava. Apoiava minha vista na inquietação. A atmosfera do cômodo parecia indiferente às emoções manifestadas pelo braço. Seria a pressão do hábito o que me detinha ali?
O motivo todo era fútil, uma tolice. O braço tinha deixado a casa ou a casa o havia colocado pra fora, não sei ao certo. Como eu soube? Não importa. Eu estava lá, eu vi.
O braço parecia absorvido na luta pela vida, no quarto, em que também olhava imagens através do espelho. Pobre corpo obrigado a se defender do próprio braço. Era preciso mantê-lo, mas sem prestar-lhe muita atenção. Nem a cama de sucupira talhada pelo artesão de Carangola, nem o tablet enviado por um amigo da Zona Franca de Manaus chamavam a atenção. Revi passar de um lado a outro até estacionar e sentir que o sol feria a vidraça da janela.
Lá fora um jardim cercava a entrada da casa. Ali dentro todas as portas que se abriam davam para outros cômodos com portas e janelas. Realidade que emprestava à percepção do braço uma sensibilidade esquizofrênica. Vencidos esses detalhes...
- O ser humano adapta-se a tudo, Manuel.
- Uai, rapaz, essa frase é surrada, mas presta pra agora. Ouça. A natureza se vale do meio para realizar todas as suas disposições. É no antagonismo que vivemos. O braço, por exemplo, parecia que se agarrava a esse tipo de ideia para não decair na miséria de um crime contra a vida. Trancado no do corpo era como se soubesse que o tempo não criara para ele nem uma mísera existência dessas que são suplementares e que vivem à sombra de outras. Intuía que se houvesse um lugar no mundo ao qual estivesse destinado, este surgiria da massa das coisas que constituem o habitual e que o tempo continuava a correr docemente, indiferente ao braço. Triste, acocorado, abraçado ao abdômen e com a cabeça recostada na parede, o corpo sentia nos pulsos a percussão de uma música misteriosa que lhe fazia volver ao organismo que respirava e deglutia suas células: tremia num esforço de vida.
- Miserável o ser humano que se adapta a tudo, né Manuel?
- Sem se revoltar, talvez. Mas escuta, senão eu paro de contar. Contra as mudanças que se lhe antepõem como condição para seguir vivendo é que o homem revoltado parece agir. Já leu Camus? Bom, mas pelo modo como percebi que se manifestava, o braço parecia sentir uma cruel correspondência com o pensamento. Vagarosamente abandonou a posição em que estava e passou a seguir o corpo, badalando feito o pendulo de um relógio.
- Esse jardim que existe lá fora...
- Menino, deixa contar. O jardim era uma coisa fora da casa. Ele não chegava dentro, porque só existe lá fora, não pode ser nunca o jardim para a casa, mas o jardim da casa, e serve só para enfeitar a fachada para os outros verem a onde o braço mora. Esse jardim é dos outros.
- E o braço?
- Sei lá como isso surgiu. Era um corpo, uma ideia, de repente um braço. Podia ser um nariz, uma peça de roupa, já leu Gogol? Em torno do corpo uma atmosfera cinza triste e nela se fixava a imagem do braço, dos objetos inanimados que começaram a adquirir vida própria, bem mais intensa do que a que vivera. Sentia como se as coisas e as palavras tivessem mais vida a oferecer ao mundo do que o próprio braço poderia viver para oferecer. E isto o fazia suar num esforço para despertar a lembrança que o sufocasse de vez. Mas cedia a cada instante por causa de uma folha ou outra que caía da copa da árvore lá na rua, por causa de uma brisa de ar crispado no minúsculo vão de uma trinca no vidro. O grande caminho que o corpo lhe emprestara estava ali, coberto com a lama esturricada debaixo de um teto de sol.
Um movimento extraordinariamente rápido, brusco para um braço abatido, volveu o corpo inteiro para a cama e sem mais o braço usou a mão com os dedos e apanhou um livro que jazia sobre o edredom. “Você, como pode!” Disse ao livro. “Ainda não acredito. Que absurdo! Um livro ser tomando por sujeito de uma história, vá lá, mas assim, de um modo pernóstico”. Não pôde crer que fosse o livro o sujeito de uma ação sem cabimento.
- Não pôde ou não quis? Afinal...
- Deixa contar. De pé, parado diante do espelho, comparou ao mesmo tempo a personalidade que cria com as das outras pessoas com as quais tinha convivido por mais tempo, se imaginando numa posição entre a atitude e a beleza da forma das atitudes do corpo alheio. Mas logo reconheceu que essa acuidade interior não era mais do que um reflexo adquirido pelo esforço de um choque violento. Quis fazer ir embora, mas não conseguiu fazer, nem ir. Ficou ali a vida inteira, se pudesse ter tido pelo menos um fiapo de vida para chamar de inteira.
- Que tolice. Por que não diz logo isso tudo aconteceu com...
- Por que não falo? Por que não vou...
- Imagino que chegaria a algum lugar.
- Sei que chegaria a algum lugar. Mas onde? Ah, sim, aos termos finais disso que conto. Vamos tomar um café?
- Desculpe interromper. Sei que isso parece importante para você, mas não vejo onde deseja chegar...
- Que diabo! Não importa chegar, o que importa é ir. Esse é o maior dos problemas da espécie humana: querer um ponto final para tudo, um final e um começo, quando o que vale é o caminho. Outro problema parecer ser o de admitir a universalidade do direito. Cada um quer que as coisas sejam seja assim ou assado. E o pior é que o homem, enquanto espécie, ora tem necessidade de um senhor ora de ser senhor de alguém. E isso não se resolve de modo definitivo. Era isso que queria dizer. O braço não se decidia. Mas compreendo a que extremo uma simples atitude de autoconfissão poderia levar uma pessoa desconfiada com o braço. No fundo, sei que sabia que tudo o mais seria inútil, e o braço incomodava. Detesto café passando na hora. Nesse lugar quente.
- Mas o que ia contando?
- Sim. O corpo, deitado na cama, media o tamanho do acontecido com palavras de desespero. E na confusão do pensamento nascia como que uma nova visão das coisas. Mesmo que se colocasse numa posição falsa e por muito se esforçasse por atenuar a repulsa em relação aos outros, não conseguia mais do que esconder o amargo e silencioso rancor plantado no coração. Será possível? Mesmo que tentasse renovar a amizade com as pessoas da casa encontraria, no fundo, o veneno daquela instituição inoculado no braço. Não se constrói facilmente aquilo que um momento de irreflexão destruiu sem esforço. Sabia que as palavras ausentes eram as essenciais. Como ignorar qualquer coisa se aquela angústia nascia da sua própria carne?
O dilema absurdo que o abraçara na cama era a marca de um acontecimento que o desnorteara para o resto dos seus dias. Deitado na cama era um pavio sem pólvora, um navio sem bússola, uma história repleta de conteúdo sem enredo, ou o que pode ser pior, com enredo tomado de empréstimo a um narrador sem ambiente para encarnar as personagens: um braço e nada mais. Sua existência era uma curiosa história. Não se sentia com direito de requerer coisa alguma, aprendera, de pequeno, com a casa, a estrangular desejos pessoais, nem sequer fazer ele próprio a sua pipa podia; empiná-la, então, era sinal de surra no fim do dia. E até das surras guardava lembrança de que eram para a sua proteção. Afinal de contas morria-se também de choque elétrico.  
Sabia, lá no fundo da intimidade, que a diversão era causa para as desventuras da casa, que já tinha preocupações demais no dia a dia, e não podia se dar ao luxo de ter preocupações com uma criança que brinca. O melhor, para a casa, sempre fora o pior para o braço: beliscões, chineladas, vassouradas, raquetadas. Permaneceu intimidado por móveis, porta-retratos, espelhos, prateleiras, tapetes, sabonetes, latrinas, e tudo o que há de se respeitar cerimonialmente dentro de uma casa. Em suma, uma história de vida pessoal que, até aquele momento, mergulhara o corpo na solidão de si mesmo em busca de um tempo perdido que pudesse ser revivido. Resumo que tudo consistia em nunca ter vivido bem dentro da própria casa. Era uma guerra da qual o passado não emprestou nenhum exemplo.
Notei que o braço pareceu lançar um olhar em torno de si, desejando esquecer o que o atormentava. O livro foi olhado com desdém, o tablet apanhado ao pé da cama para que pudesse ouvir música. “Bob Dylan”... Ah, os livros, não poderia ser o livro a causa da desgraça de uma pessoa. Não no século 21. Compreendera e até aceitara a queima de livros pelos cristãos em Alexandria, mesmo que só para acertar uma questão ou outra no vestibular. Conhecia razoavelmente as razões “racionais” que levaram muitos alemães a queimar livros nos anos 30 e 40 do século passado. Entendia a veracidade do mercado editorial na atualidade para editar livros de autoajuda mais do que brochuras decentes das quais as pessoas mais precisam do que gostam. Só não aceitava o fato definitivo que divorciara o braço do corpo e este da casa, o fato de terem contaminado a vida em comum com a imagem perversa de que aquele livro, agora jogado sob o lençol surrado da cama, era uma afronta à vida, uma ameaça à arquitetura e a toda vida social, porque o teria afastado do contato com as outras pessoas. Mas seria isso mesmo? Não seria isso uma mentira inventada para aplainar uma dor que esburacava a existência durante tanto tempo e da qual ainda não tinha entendido a origem?
No autofalante do tablet surgiam os acordes que surrupiaram o silêncio condicionado nas paredes dos cômodos da casa. Dez minutos passados como se fossem um dia inteiro e nenhuma música rolou inteira. Interrompia uma após a outra depois de ouvir a introdução. Chateado de não poder ouvir música, era como se o braço se sentisse uma cinza atirada ao vento. “Eles me odeiam. Disseram na minha cara que sentem horror a esse tipo de gente que eu me tornei: ‘Não suportamos esse seu jeito’, disseram, ‘não toleramos esse tipo de atitude!’. E me jogam na lata que é por causa da casa, que eu tenho que entender”. Vai ver, foi a avó, matriarca da família, que tornava os dias perdidos bancando a velha paralítica que nada fazia que não fossem maldades para testar a fidelidade e docilidade canina dos outros membros da casa.
Desligado o tablet, a atenção voltou-se para o barulho do ventilador ligado num canto desde o dia anterior. O braço agia como que se recordasse um monólogo que a velha paralítica havia apresentado dias atrás: “Entre nós nunca existiu esse negócio de ficar sentado o dia todo lendo. Aqui a gente trabalha. Ainda mais quando se lê um livro só. Se você pelo menos estivesse escrevendo um para poder vender! Mas não, não escreve e nem ganha dinheiro com isso. Você quer o quê? Tem um tanto de professor formado nessa casa e que nunca leu nada. E você aí, se achando só porque lê. Nunca vi esse seu braço fazer nada além segurar livro. E ainda inventa de dar opinião na casa. O que é que você acha que pode aprender com isso, com esse monte de papel amarelado? A vida... escute bem, a vida é outra coisa”.
Tivesse ou não razão a velha paralítica, a perturbação era intensa no corpo do braço desajustado. Tanto que a imaginação da gente precisa dar uma volta inteira no parafuso a fim de apreender o quadro dessa história. Se é que existe moldura para ele. A questão era outra. Os livros de um modo geral surgiam apenas como trincheira. Aquele livro de papeis amarelados era apenas um signo, um sinal de vida que se queria fazer inteligente e que tanto ameaça os opróbrios da turba de espermatozoides que venceram a corrida na estrutura da casa. Não significava outra coisa, pelo menos não para o desespero do braço humano. O pior parecia ser não saber jamais se aquelas suposições levantadas obedeciam somente o descontrole da fantasia de cada um dos parentes. Era um horror velado o que havia revelado o cotidiano numa casa de família, numa casa que amara.
Odiava o costume da casa de mentir a propósito de tudo. Até mesmo sobre a felicidade. Mas fora isso que aprendera a fazer na vida doméstica e dificilmente conseguia encarar o mundo sem calçar alguma mentira deslavada nos pés antes de pisar no chão e misturar o corpo aos outros na rua. Ninguém gosta de gente triste e, no mais das vezes, os tristes aparecem aos olhos dos felizes como quem mendiga ou deseja roubar-lhes alguma coisa.
Sentia que nunca na vida teria coragem para a verdade, e que mentiria a vida inteira. Que não morreria de excesso de realidade. Talvez, tudo o que foi contado até aqui por este narrador metafísico não passe de mentira. Mente? Juro que não. Pode confiar. Tudo que contei até agora foi dito de coração aberto. E se conto é por que foi este o último pedido de um moribundo, o último pedido de um jovem a quem um dia eu tive acesso, e a quem devo minha vida. Por isso conto. Com respeito ao pedido de um morto.
Sim, mentiria pelo resto da vida só para não ter de suportar as consequências pessoais da terrível verdade que não conseguia experimentar. Se fosse amadurecido, creio, se tivesse um pouco da vivencia que tenho agora, imagino, não mentiria, mas ocultaria a verdade. Sim, porque todos que nos olham podem adivinhar nossos gestos. O que aprendemos ao longo da vida é como nos ocultar. Conhece Lúcio Cardoso? Ele anotou num Diário que “o que ocultamos, é o que importa, é o que somos”. Os loucos não ocultam nada – conhece Foucault? Nietzsche? Só lê Marx? Freud? – pois bem, os loucos expressam os gestos do mundo interior ao invés de repetirem os gestos do mundo aprendido, seus gestos traduzem os signos do mundo secreto em que vivem. Você sabe. Mas nada disso importa ou já não importa mais. A verdade é que para todos os parentes próximos não passava de um inseto, de uma mosca que, como na canção popular, perturbava o sono da casa com os gestos do seu braço.
“Mentir é o destino de todos os que aceitam a vida”. Repito que prefiro ocultar a mentir. Mas não se trata de mim. E repetia um refrão de uma canção do Walter Franco, adaptada diante do espelho, num ritual quase esquizofrênico: preciso ter “a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranquilo”. Já pensou? Mas isso também era uma mentira. Ou parecia ser. Não aceitava a vida. No caso, o hábito de mentir emprestava ao pensamento um colorido de realidade. Não podia ou não conseguia deixar de sorrir para a imagem que via no espelho. Não aceitava a vida, já disse, porque lutava para transformá-la de algum modo. Volvendo o olhar para a fissura que o sol abria na janela senti como que se escapasse do corpo um suspiro, e imaginava: “será esse triste movimento um jeito estranho e definitivo de não aceitar a vida?”.
O sol começou a arder, ainda não era meio dia e o corpo abaixou junto ao pé direito da cama para o braço apanhar uma lata de cigarros que ficava escondida debaixo do catre. Pensava: “então é isso agora; tudo que sofro pode se resumir no fio da meada de um cilindro cônico. Está aqui, em minhas mãos a salvação do mundo e, no entanto, para mim, isto é o prólogo da morte”. Cada um que se crie. É por isso que precisamos da coletividade. Mas era exatamente por ter se criado a si mesmo que o braço perecia embolorado no corpo dentro de um quarto. Ignorava as razões dos outros, menos a experiência do corpo. Se recusava a realidade, era por egoísmo, mas não por medo. Sentia aversão aos aborrecimentos que a realidade poderia trazer. Ou melhor, recusava a realidade por indolência, por preguiça de desdobrar. Via refletido no espelho um corpo a lamentar e um braço a soerguer nada no vazio.
Quase sem coragem para reviver o tempo perdido. Era ela, a verdade: a realidade definitiva de que fora sempre o único elemento estranho naquele ambiente doméstico. Desde que tornara professor parecia com um fermento mal lançado na massa. Esquisito ser que se escondia da família e dos parentes em geral atrás das capas de livros. Geralmente, nos últimos meses, atrás da capa daquele livro de paginas amareladas decompondo sobre a cama. “Dinheiro?” Era inútil poder ou não ganhá-lo. A vida familiar com a qual sempre sonhara era uma vida inatingível, a única coisa que aprendera a sonhar durante toda a vida. Especialmente naquelas circunstâncias que havia experimentado a vida em família. Se ao menos renunciasse ao que era e deixasse o corpo viver subsumido nas trevas com que a sombra da matriarca da família embrulhava as pessoas. Mas já não simpatizava mais com essa parenta. A quem a fortuna já havia deserdado da vida. A quem só conseguia enxergar naquele momento íntimo da memória pessoal como se fosse uma imagem de um monte de ruínas carcomidas e desmanteladas de uma velha residência patriarcal. No entanto, um sopro vindo sabe-se lá de qual profundeza que habita o interior do corpo humano lembrava de que ela é a avó. Não sei, mas parece tanto o diabo essa velha, penso.
Sentia a solidão pesar sobre a vida e o tormento dessas criaturas noturnas perdidas no abandono de si mesmas. Precisava saber algo. Mas o quê? Que era feito de pedra, dos pedaços de pedra arrancados para dar forma ao que havia tornado de pedra, a pedra? Quase concluía o óbvio de que ninguém pode viver só, entregue apenas ao seu desencanto. Com o coração real que pulsava no peito começava a compreender com que grande capacidade de se dar era feito aquele braço, de que natureza era feito para o abandono de si e a vitalidade do aperto de mão, do abraço, do encontro com a vida na ventura alheia. O braço parecia que tinha uma alma. Sua alma, imaginava, era feita para viver a vida alheia, era esta a sua vida, a vida toda. Uma espécie de signo. Mas o braço não queria nem saber. Era jovem, viril, muscular.
Pudera compreender aquele sortilégio que o distanciava das demais criaturas. Ser destinado ao mundo para permanecer à parte, dentro de uma grandeza ou de uma miséria que não era nem a grandeza nem a miséria habitual dos homens sonhadores. Vencendo a impressão que tivera, o braço fez um movimento de recuo para fora da visão do espelho e abriu a janela a fim de libertar o corpo do quarto e do cheiro das drogas fumadas e das drogas trazidas à memória pela lembrança dos dias perdidos.
O livro, não, não pode ser o livro. Que mal pode fazer às pessoas um livro? Uma pessoa comum lendo um livro pode até chamar a atenção nesse mundo de televisores, mas daí um professor ler um livro não devia ser estranho, muito menos aterrorizante a ponto de chegar a isto. Mas é. Aqui estou diante do livro. E o que ele pode fazer? Objeto inerte? Mas um professor pode fazer alguma coisa com um livro... ele faz? E o faz porque o livro o fez fazer?
Ali estava ele, rapaz, diante do livro, um braço armado. Lembra-se do filme O Nome da Rosa? Mas seria absurdo supor que esse caso pudesse ter alguma similitude com o da crônica medievalista de Umberto Ecco. Ao reparar uma figura imóvel na sombra que projetara à parede reparei que olhar para dentro de si não projeta para fora o que há dentro de si mesmo, mas imagens externas que a opinião dos outros exprimem para dentro quando se deixa a porta de casa ou as janelas abertas para a rua. Como que se fossem essas imagens vísceras nascidas com o braço. Era a sensação da solidão em que vivia. Tão só que tudo o que tinha eram as experiências comentadas dos outros. Consciência cruel a de se achar entregue a si mesmo, às suas próprias forças, sem poder contar com uma gota de suor alheio. Terrível consciência quando não se conhece tais forças, o valor que elas possuem e o equilíbrio que delas provém. Resmungava. Resmungo.
Alegria dolorosa a de chegar a alguma consciência agitada de sofrimentos sem formas. Voltei a notar o corpo pendurado sobre o braço, apoiado no parapeito da janela. Penso na perversidade do tempo, nessa perversidade que apodrece a carne e que, ao mesmo tempo, conserva no subterrâneo das pessoas essas sombras incolores que se agitam de repente no subsolo da memória. A um olhar ou um gesto, erguem-se empoeirados do sepulcro os dias esquecidos, só para fazer sofrer aquele que se distanciava levado pela corrente d’uma onda de cadáveres.
Que esse herói sem nome ou pessoalidade se desconhecesse e precisasse de um autor para narrar sua fortuna, vá lá, é coisa que a gente consegue entender. Que sofresse das reações impostas ao seu espírito, compreenderia também. Mas que um caboclo se sentisse um braço ameaçado de cair com o corpo inteiro nas grelhas da sua própria família é parte de um mistério que se tornou um tormento. Sem saber encontrar a força de que precisava, sentia entregar lentamente o que restava para a intrusão que aos poucos fazia crer na vinda de alguma força sobrenatural para salvar o braço daquilo que fizera com os restos da vida que fizeram para ele viver. Já não tenho mais medo. Ao abandono!
Pela primeira vez em dias sinto ao contar essas coisas uma vaga de certeza além de qualquer rancor. Uma verdade que se cumpriria porque era mais forte do que qualquer sentimento, mesmo que acreditasse ou amasse verdadeiramente qualquer sentimento. É na mentira que se vive bem nesse mundo. Insisto. A verdade é para poucos, a verdade é para os que morrem cedo demais e parecem viver tristes. Quereria mentir para ajustar o braço à essa história, nessa sociedade de fantasias moles e sem sentido.
Enquanto sofrera a suposição de um rompimento com a casa, a família se divertia com a realidade das ausências. Faziam piada e até comentavam sobre a debilidade mental e motora, já que não lia outro livro fazia meses e não saía de casa para as baladas por causa do tal do livro. Mas disto preferiria que tivesse permanecido alheio. Como se a ligação com o mundo fosse um ato fora da vontade, sentia que a barreira, a barricada, a trincheira cavada entre o braço e a casa era definitivamente um sentimento. O livro não era um objeto inanimado, como supusera antes, induzido pela brutalidade habitual da família. Era um poder estranho, um poder de dominar o corpo, o braço. Se havia medo, creio, constituía uma fraqueza de enfrentar as consequências dos atos livres que o braço pudesse praticar com o corpo em nome da razão e do amor.
Agora, com o desenrolar dessa vivência, noto que o braço se tornava impenetrável às injeções. Dificilmente saberia dizer quem é se o topasse novamente no espelho. Mas os espelhos não mentem, enganam, mas não deixam de dizer a verdade das formas que refletem. Preciso terminar. Ficamos algum tempo debaixo do sol e sinto minhas carnes amolecerem. Essa pequena história da vida que contei precisa chegar a um fim. Não sou eu coisa nenhuma. No limite, não passo de um atorzinho de meia tigela, criado com refrigerante e skine nos anos 80. Que direitos tenho sobre isso que digo? Nada. Foram eles que me deram tudo. Sim, eles têm lá suas razões. Agiram, fizeram acontecer. E eu? Eu assisti ao suicida, que num dia sai de si, da vida, para dar espaço às opiniões das pessoas como eu, que preferem viver na companhia de cadáveres e zumbis ou outros seres adjetos do que de gente de verdade. Então o que digo é que vagarosamente o braço ergueu o corpo e atravessou o tronco inteiro pelo parapeito, usando o mesmo braço como alavanca. Estava no segundo andar de um sobrado. Da altura dos olhos até o chão eram uns seis metros. Os gestos lentos. De lentidão premeditada. Como podia ser aquilo? Mas no útero da decisão de deixar o corpo cair de cabeça no chão um movimento confuso dispôs o tempo, que surgiu a fim de devorar tudo, inclusive o desejo de morrer. É possível que tenha descoberto alguma coisa. Ninguém age e pensa impunemente nessa vida.
Confesso que o braço veio a mim como se viesse um tuaregue beber numa fonte. Mas por quê? Por que essa necessidade de se exprimir, e nessas condições, nessa situação, como se procurasse uma alma pura para suprir a sede da culpa? Sim, queria estancar a sede do amor ferido pela presença daquelas horas sem luz. Conto, expresso repetidas vezes, o que foi contado a mim. Claro que palavras a mais palavras a menos nem tudo o que é visto pode ser dito, que dirá escrito. Há muito que se perde da narrativa original, mas também há algum ganho de imaginação com a transcrição daquilo que se ouve contar. Já leu os romances da Leida Reis? Personagens abandonados pelos deuses, pela razão, entregues à loucura de viver com suas vontades livres. Sei lá. Qualquer coisa desesperada fica no caminho para que uma trágica percepção da vida se possa reconstruir com palavras. O braço percebeu demasiado tarde que certos sonos são como outra vida. Os sofrimentos e a negação da vida continuam. E dessa outra vida só se desperta para esconder um ódio que a realidade estrangula no medo.
No fundo de tudo é o medo de si mesmo. É o medo de permanecer sozinho, nesse mundo onde a dor de cada um é solitária e se realiza solitária e morre solitária. Não dá nem pra falar de dor e sofrimento sem criar um tom avermelhado de vergonha nas faces. Como disse antes, dor, sofrimento, vida, desespero, eu interior (self), enfim, cada um que se cuide, cada um que se crie. O que importa é fazermos isso juntos. De resto é tudo mais ou menos a mesma coisa pra todos. Intestinos, sucos gástricos, bactérias, fungos, células que se vão enquanto outras nascem, só pra manter a destruição gradual e lenta que o tempo produz sobre todas as coisas, até que elas morrem.
O tempo passa e o braço apodrece pela carne. Parece gostar de se perturbar. Mas pelo menos não chegou ao ponto de flagelar a mão e acusar com o dedo um pobre volume de papeis amarelados pelo desmantelo que foi a vida. Pode muito bem ter chegado ao termo de suas descobertas íntimas através de um imbróglio com a casa. Mas neste caso o que aconteceu foi uma mera faceta da vida, faceta que usa a imbecilidade e a ignorância para fazer afirmar a inteligência e a sutileza. Por fim, o braço se descobre e se encontra na antítese de suas teses domésticas. O amanhã, ele desaparecerá dentro dos livros, embebido em jornais. 
Agora vamos à sombra, enquanto termino de contar o horror da lucidez que me pega pela mão para me fazer sofrer. Nada importa individualmente, os sofrimentos de cada um a cada um pertence, porque nada importa ao homem que esmaga o tempo na tranquilidade de um livro. Você, a quem tenho me dirigido, e que com silêncio tem me prestado a atenção, pode até dizer que essa história toda é ridícula. Mas quem poderá deixar de ser ridículo quando luta com a razão, em nome do amor? Como assim, você dirá? Mas saiba que o progresso da espécie interessa ao indivíduo, mas o progresso do indivíduo não importa nada para a espécie. E se aperfeiçoamos a razão, não é pela razão, mas pela nossa vida animal, pela continuidade da nossa pobre condição humana. Isso vai longe e já temos de ir para a aula. Vamos. Que pode pensar um homem quando está cheio de si mesmo? Que experiências pode dizer um homem quando as experiências que possui são meras anotações extraídas de livros? Como esse braço, que digo, é meu, viveu atolado na mentira! Sua verdade era apanhar livros, empunhá-los para a esgrima com as ideias, ser professor. Foi sempre assim, desde que ensinava história e geografia aos colegas de ginásio em troca de cerveja. No mais, ele viveu atolado na mentira para poder suspirar essa verdade encontrada no magistério. Morreu cedo, aos 28 anos de idade. Como corpo que, por inteiro, apodrece dentro de casa e morre lançado ao vazio, ao nada. Encontrei-o primeiro, ninguém mais o quis saber. Providenciei um funeral e a cremação. Servi cerveja para os amigos cadáveres beberem o defunto e carne para provarem seu último pedaço de companhia. Achei-o deitado como que se abraçasse o chão. Ao lado do corpo o braço encostado no tablet que rolava Behind the wall off Sleep, do Black Sabbath. Dentro da casa, num canto da sala, um caderninho novo, com uma única frase escrita à mão, dizendo: “a quem primeiro me encontrar, avise aos amigos que miséria é ter um coração feito para o amor”.