O
expediente das carrancas foi interrompido pelas brincadeiras de fim de ano em
sala de aula. Para o narrador, até hoje, continuam poucas as chances de ser
melhor ou pior do que se conseguiu ser até novembro. Há quem jura ser capaz de
melhorar as notas no próximo ano. E quem sabe, há os que melhoram no grito
aquilo que se espera melhorar em silêncio. Mas isto se o professor puder
compreender, ou ajudar, o que dá quase no mesmo. Fosse como fosse, o ano de
2012 foi. Dele mesmo quase nada ia reter, não fosse o acontecimento, o
inesperado.
É
costume pra tudo que é lugar brincar de amigo invisível ou amigo oculto no fim
do ano. Isso já ficou tão comum que parece difícil escapar a uma criticazinha ou
a um olhar seco de alguém quando se tira o corpo fora. Se “não vou brincar” tem
um tanto de gente querendo saber se estou duro ou se vou viajar para a praia ou
outro lugar. Se “vou brincar” corre logo uma listinha de presentes para que eu
possa notar o que os outros querem e anotar o que eu desejo ganhar.
O
convite feito pelos alunos foi de tal modo despretensioso aos olhos do
professor que ele aceitou imediatamente. Sabe-se lá porque aceitou. Tem coisas
que professor não sabe. O narrador só pode supor que por causa de alguma força
dessas que emergem dos subterrâneos cinza triste que compõe a atmosfera do Eu
do professor dividido na periferia do capitalismo, abandonado por Deus e
entregue aos deuses dos homens, a si mesmo e aos outros que o compõem feito
espelho. Importa é que o professor aceitou o convite e, por isso, aconteceu. O que
aconteceu? É disto que essa memória veio tratar.
Brincar
de amigo secreto presume o óbvio: comprar e ganhar presentes. É mais uma
cerimônia do que um acontecimento burguês. Esse é um palpite de que é uma
cerimônia religiosa da fé burguesa em homenagem ao mito da amabilidade humana,
quer dizer, é só uma opinião. O fato, o acontecimento, a experiência a que se
pode chamar conhecimento escolar é diverso da opinião. Depreende dele a
novidade, o não habitual, o caráter histórico que merece um lugarzinho no
arquivo da memória escolar burguesa. Trata-se da trama, da urdidura com que foi
elaborada. Vejamos juntos, narrador e leitor, o que aconteceu e depois cada
qual que se entenda como puder com o dito acontecimento.
O
professor entra na sala de aula do 2º ano de História da UEG na unidade
universitária de Porangatu. É mês de novembro e os alunos inalam o clima de
verificação da aprendizagem. Convidado a participar da brincadeira do amigo
secreto o professor diz “sim”. Imediatamente, os alunos que o cercam sorriem e
mandam pôr lá – no papelzinho – o nome do professor. O clima festivo desloca a apreensão
pela atividade avaliativa: “Ah, professor, deixa essa atividade para o final da
aula. A gente vai ter de fazer o texto da avaliado em casa mesmo”.
Acordados,
professor e alunos começam os trabalhos daquela noite como ode ao consumo. “Então
vamos combinar os presentes” diz uma aluna. “Tem de ser num valor acima de
vinte a abaixo de cinquenta reais” diz outra. “Desse jeito todo mundo dá e
recebe presente bom” justifica uma terceira. “É melhor que fique tudo mais ou
menos no mesmo preço” comenta um rapaz na fila do canto. “Eu acho que é bom”,
palpita outro escorado na janela enquanto dobra uma folha de caderno para
improvisar um leque. “É, isso mesmo!”, diz o coro das vozes da maioria. “Então,
se é assim, eu quero um molinete, ou uma vara de pescar” diz o professor em tom
provocativo. “Uma vara e um molinete?” questiona uma aluna com olhar de sapeca.
“Mas se puder, pode ser uma canoa”, provoca o professor. “Com remo ou a motor?”
ironiza o aluno que se abana com o leque de papel. “A motor, é claro”, responde
o professor. Ao que a aluna que distribui os papeizinhos questiona: “Tudo isso só
pra comer um peixe?” “Sim”, responde o professor com aparência de lógico. Ao
que a aluna com olhar de sapeca interrompe com gestos de liderança: “Oh, gente,
então quem sair com o professor compra um peixe pra ele”...
A
turma era só rizada quando a aluna com olhar sapeca transfigurou a face para
parecer mais com o que ela é no cotidiano da sala de aula, e sapecou: “Gente, acho
melhor passarmos uma lista para cada um anotar o que deseja ganhar! Assim fica
mais fácil pra gente escolher, porque não é todo mundo que conhece um ao outro,
e a gente pode sair com quem não conhece direito”. A maioria tornou a
concordar.
Calado,
o professor começa a se preparar para fazer a chamada quando um aluno do fundo
chama a atenção para si gritando: “Eu preciso de um facão!” e justifica: “É que
lá na roça o peão pegou o meu esse fim de semana e acabou com o corte dele, pra
não falar do cabo que já tá uma miséria”. Os alunos riem, o professor sorri com
um canto de boca, e o rapaz do leque emenda: “Uai, se é assim, eu preciso de uma
galinha botadeira! As lá de casa estão fracas demais e eu já penso em cozinhar
uma na pressão”.
O
zum-zum-zum da turma é logo interrompido por um riso coletivo. Com ar de surpreendido,
o professor ergue os olhos para a turma e o que vê é uma sala de aula repleta
de trabalhadores e trabalhadoras. “Eu quero trocar o presente que anotei ai no
papel da lista. Apaga ai no meu nome o perfume que anotei e põe ai um saco de
polvilho. Esses fins de ano a gente usa isso demais lá em casa”, comenta uma
moça. “Pra mim pode ser uma muda de gueiroba, mas se não tiver, serve camarguinho
mesmo”, retruca um rapaz.
As
necessidades e preferências iam se acumulando uma atrás da outra. Era aluno que
precisava de botina, outro que preferia uma galocha, um e outro que
necessitavam de algum tipo de muda pra plantar no jardim ou no pomar e os que
se contentariam em ganhar uma garrafa de murici curtido na pinga ou uma banda
de leitão ou caititu pra passar o ano novo mastigando. A novidade surpreendia a
todos que naquele momento esperavam ouvir as banalidades de sempre em meio a
uma brincadeira de feição puramente comercial. O professor entrou na jogada e
pediu logo um frango caipira, limpo, pronto pra ir pra panela.
No
dia da revelação e entrega dos presentes quase não se cumpriu o combinado. Teve
o que ganhou uma faca e disse mirando o professor que “é de matar mineiro”, teve
o que ganhou um canivete de 12 peças, o que ganhou uma bússola, o que ganhou
uma coletânea de livros fotocopiados e encadernados, a que ganhou mudas de
Dipladênia e Tumbérgia e a que ganhou uma muda que o professor esqueceu o nome,
mas que o narrador arrisca ser Congea Tormentosa. No mais, trocaram-se presentes
como de costume: coisas de plástico ou de tecido. A turma achou graça,
confraternizou comendo galinhada com pequi, e a aluna sapeca comentou, em meio
às bocas que mastigavam, que “o professor precisava mesmo de uma bermuda nova
pra vir dar aula, essas que ele usa já estão velhas... parece até que ele dá
aula na roça”.
2 comentários:
risos. a roça é como o sertão. está sempre adiante, não é? é sempre o outro. seinão... acho melhor assumir logo esse lugar que é o nosso. ou seja: dá aula na roça mesmo! não que isto seja uma crítica. deviamos mesmo é ensinar a história util à roça. em vez da européia ou da 'capitar'.
"ensinar história útil à roça", "51"!!! Digo, "boa ideia" rsrs... Vou ver como isso se arranja. Antes, como diria um amigo de big-river black, lembrando Antônio Cândido, temos um coração caipira num corpo talhado para o cosmopolitismo... e do modo como o "monstro siste" nos encara, se a gente não busca outras formas de juízo, fica a sensação de um membro perdido, como que se uma parte de nós nos faltasse na exata medida de sua presença...
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